quinta-feira, 2 de abril de 2015

RELIGIÃO, NAÇÃO E ARTE VISTAS POR MANOEL DE OLIVEIRA

Antes de mais quero agradecer este muito honroso convite para pronunciar, neste encontro, umas simples e breves palavras. Principiarei por dizer-vos ter pensado que as éticas, se não também mesmo as artes, seriam derivadas das religiões que procuram dar uma explicação da existência do ser humano face à sua inserção concreta no cosmos. Universo e homem, criações dum ser transcendente, colocam-nos problemas inquietantes para cuja solução o Verbo, que se fez carne em Cristo, nos trouxe insuperáveis graças divinas.

As Artes desde os primórdios sempre estiveram estreitamente ligadas às religiões e o cristianismo foi pródigo em expressões artísticas depois da passagem de Cristo pela terra e até aos dias de hoje.

Sou um homem do cinema, do cinema que é a sétima das artes, logo a mais recente de todas as expressões artísticas, pois não tem mais que um século, enquanto outras terão milénios. Em dois dos meus filmes, figurava um Anjo. No ACTO DA PRIMAVERA, baseado em um auto popular, da família dos chamados Mistérios ainda no século XVI. Este figurava a Paixão de Cristo, projecto que realizei em 1962, e onde a figura de um Anjo fazia parte do próprio contexto religioso desse Auto. No outro filme, CRISTOVÃO COLOMBO - O ENIGMA , realizado já em 2007, o Anjo não constava do contexto da história do livro em que me baseei. No entanto, pareceu-me bem introduzir o Anjo da Guarda, aqui o da nação portuguesa, como prévia configuração do Destino, tantas vezes adverso e tantas outras favorável às acções humanas, como aconteceu nessa feliz viagem do navegador que, pela primeira vez, encontrou as ilhas americanas de Antilhas. Isto levou-me a repensar as figuras dos Anjos fora e dentro das Igrejas, parecendo-me conotadas com prefigurações dos espíritos. Ora se os espíritos são um só, então temos nele a natureza de Deus.

Considerando, porém, a religião e a arte, ambas se me afiguram, ainda que de um modo distinto é certo, intimamente voltadas para o homem e o universo, para a condição humana e a natureza Divina. E nisto não residirá a memória e a saudade do Paraíso perdido, de que nos fala a Bíblia, tesouro inesgotável da nossa cultura europeia? Acossados pelas especulações da razão, sempre se levantam terríveis dúvidas e descrenças, a que se procura opor a fé do Evangelho que remove montanhas. E os seres humanos caminham na esperança, apesar de todos os negativismos. Como diz o padre António Vieira: «Terrível palavra é o NON, por qualquer lado que o tomeis é sempre NON...», terminando por lembrar que o NON tira a ESPERANÇA que é a última coisa que a natureza deixou ao homem.

Se as artes nada mais aspiram a ser que um reflexo das coisas e acções vivas dos procedimentos e sentimentos humanos do universo real ou em fantasias imaginadas, pode aceitar-se o que um realizador mexicano, Artur Ripstein, classificou dum modo magnífico e surpreendente o cinema como sendo o espelho da vida. E é-o de facto.

Não querendo alongar-me mais, aproveito a circunstância para, como pertencente à família cristã, de cujos valores comungo, e que são as raízes da nação portuguesa e a de toda a Europa, quer queiramos ou não, saudar com profunda veneração sua Santidade, o Papa Bento XVI em visita ao nosso País e rogar filialmente que nos deixe a Sua bênção.

MANOEL DE OLIVEIRA
(1908 — 2015)

[Discurso proferido durante o encontro de Sua Santidade o Papa Bento XVI com pessoas da Cultura Portuguesa, entre as quais tive a honra e o prazer de estar. Pude assim ouvir de viva voz este magnífico texto lido pelo próprio Autor, no Centro Cultural de Belém aos 12 de Maio de 2010.]