sexta-feira, 25 de outubro de 2013

CARTEIRA DE SENHORA

DIA 90

Enquanto trabalho, a carteira está em estado de completo repouso. No entanto, peguei-lhe o vírus da inquietação, por isso me voltou a sugerir um tema como o de hoje.

Vivemos em desesperança. É um estado que nos é recorrentemente familiar. Já lá estivemos várias vezes, diria vezes demais, com anteriores governos. Julgamos impossível a salvação. 

Sem saber o que fazer, prosseguimos a nossa vida, mas roídos interiormente pela inquietação e pela revolta. Diariamente derrubam-nos os pesados pedregulhos dos erros do passado, tropeçamos a torto e a direito nos do presente, antevemos facilmente os do futuro. 

Continuamos a ver que o crime compensa, a ganância é premiada, nunca há solução quando certos interesses estão em causa, as decisões estão em piloto automático para os caminhos fáceis, aqueles cuja seta indica os mais fracos.

Como esperar justiça se as leis penais são feitas pelos políticos à sua imagem e semelhança, na exacta medida dos seus desvalores?

Quando observo as gerações seguintes, nos pequenos indícios do seu dia-a-dia, o desespero aumenta. Alguma vez haverá redenção? 

Quando não se levantam se vêem um velhinho entrar no autocarro, quando não pagam o transporte e nem a consciência lhes morde ao ver um reformado que teve de comprar o passe, quando se ouve de uma aluna (filha de professora!) que tem uma morada falsa para ser considerada deslocada quando afinal vive na zona, quando as suas preocupações principais são as saídas e bebedeiras ao fim-de-semana, o desalento assalta-nos.

Enquanto acharmos que é normal e lícito tirar um rebuçado do escaparate e não o pagar, não iremos longe. Por agora, quem assim pensa, chegará, no mínimo, a secretário de estado. Ora nós queremos que os secretários de estado nunca tenham roubado um rebuçado na vida, ou se o fizeram, tenham tido pais com a reacção apropriada.

Cada um de nós poderá pensar ter a solução perfeita, mas ignoramos como alcançá-la. O que enfrentamos parece-nos escolho intransponível, tarefa de gigante para os nossos frágeis braços.

Já não virão cavaleiros proteger-nos. Se excluirmos a hipótese de mudanças à força, resta-nos o quê? A resistência. A acção como exemplo. Se para os cristãos a sua vida deve ser testemunho, o mesmo se pode aplicar à vida política. É a nossa quota-parte na mudança que esperamos. 

Nunca nos calarmos nem cedermos. Manter a capacidade de nos indignarmos, mesmo quando poucos se indignam. Não deixar que as artes mágicas do pensamento dominante transformem o desonesto em honesto, o mal em bem.

Depois, participar em todos os fóruns ao nosso alcance. Desde o condomínio a associações desportivas e culturais, nas assembleias de freguesia, nas municipais, em todos os buracos que o sistema nos concede, quase que por condescendência, para intervir, por ínfimos que sejam.

Abdicar, desinteressar-se, é render-se, não pode ser opção. Aprendemos que pelas pequenas batalhas se podem vir a ganhar guerras.

Leonor Martins de Carvalho