sexta-feira, 23 de agosto de 2013

CARTEIRA DE SENHORA

DIA 81
De volta ao campo a carteira finalmente descansa. Descansa, mas não consegue disfarçar o medo. 
Nas minhas memórias de pequena também entram incêndios, sim. Até um bem grande que chegou perto e fui ajudar a combater, batendo com rama nos pequenos focos com as forças todas que tinha. Mas era um, uma vez por outra, nada que não fosse rapidamente controlado. 
Depois, foram aparecendo as várias razões do que hoje presenciamos. Nem sei qual a primeira ou a maior responsável. Já nem isso interessa.
Chegaram as fábricas de papel e a sua absoluta necessidade de eucaliptos e pinheiros bravos, pagos a peso de ouro comparando com o que rende a agricultura.
Saíram as pessoas das terras, desertificando-se o interior, deixaram de se cultivar os campos e trocou-se o rendimento incerto e trabalhoso pelo rendimento certo sem trabalho local, de ter umas árvores cortadas de tempos a tempos pelos madeireiros e fábricas. Uma falsa floresta foi ganhando espaço à antiga floresta e à cultura agrícola.
A lenha deixou de ser tão precisa, não há gente, não há tantas lareiras, o aquecimento vem de outras fontes, cozinha-se a gás, já não interessam tantos galhos, pinhas e carqueja, ficam nas matas. Limpar é caro, nem toda a gente pode, e só é eficaz se tudo estiver limpo.
O que mudou também foi que, além de causas naturais, descuidos ingénuos e gente louca que ateia incêndios, temos agora os que supostamente não são loucos e que buscam alguma espécie de ganho naquele horror.
Já vimos de tudo. Desde madeireiros a bombeiros, às empresas que alugam os aviões e helicópteros… Um artefacto com pára-quedas não é com certeza para atirar da janela de um carro ou de uma mota.
Alguém me disse que em Espanha tinham tido uma ideia brilhante. Não consegui confirmar a veracidade da história, mas talvez funcionasse. A ideia era, na atribuição de uma zona a proteger de incêndios, receberem tanto mais quanto menos incêndios houvesse e o máximo, se não houvesse nenhum. Não sei bem como funciona e se servia para os meios aéreos mas também para os bombeiros e outras forças de prevenção.
Resolve? Não sei. E já agora que todos os meios de comunicação fizessem a experiência de não transmitir imagens nem entrevistas no local durante esta época, anunciando isso mesmo com antecedência. Só para ver se faz diferença. Tal como levar o Conselho de Ministros mesmo para o meio de um fogo. Talvez percebam que alguma coisa tem de mudar.
Os bombeiros têm sido heróicos até ao sacrifício das suas vidas numa luta desigual. Os mortos e feridos bem como a destruição do património deveriam colar-se como sombras em pesadelo eterno dos criminosos.
Não quero, não queremos, reviver o horror de 2003 (cada terra terá o seu annus horribilis, algumas vários), quando o Concelho do Gavião foi devastado, com inúmeras frentes de fogo simultâneas, tirando qualquer dúvida sobre a sua origem humana, em que arderam milhares (não estou a inventar) de sobreiros, azinheiras, pinheiras mansas (interessam-me mais do que os eucaliptos e os pinheiros), animais e culturas, aldeias que ficaram completamente cercadas, tudo em alvoroço, sem bombeiros suficientes para chegar a tudo, pessoas a ajudar no que podiam com as alfaias, as labaredas infernais, o fogo transportado pelas pinhas projectadas e até pelas margens dos ribeiros, a família e os amigos extraordinários a acorrerem vindos de longe, a dor de ver o campo de uma cor que não lhe corresponde, os chaparros de luto porque não chegam a sobreiros…
Desde aí que os nossos olhos procuram angustiosa e inconscientemente o horizonte para descansar a alma. Nunca mais o Verão foi o mesmo.
Leonor Martins de Carvalho