sexta-feira, 16 de agosto de 2013

CARTEIRA DE SENHORA

DIA 80
 
Hoje, no dia em que escrevo, 15 de Agosto, dia em que se celebra a Assunção de Nossa Senhora, passam quarenta e nove anos sobre o dia em que meu pai morreu. Lembrei-me pois de vos deixar com dois pedaços de textos, um do Pai e um da Mãe. Não me perguntem porque os escolhi, entre tantos que ambos escreveram e se entrelaçam, como se entrelaçaram na simbiose que foi e é a sua vida.
 
Da Mãe:
«….
Desarrumadores do mundo, chamou alguém a este povo que inconscientemente misturou no seu sangue povos, culturas e línguas, em sede inextinguível de universalismo, de absoluto… Aqui tudo acaba porque tudo é pequeno. Aqui tudo se extingue no riso e na troça, que “nada é maior do que a nossa alma.”

No horóscopo de Portugal, que Fernando Pessoa traçou, a última data nele inscrita é a de 1978 que assinala a entrada na Casa N, a descida aos infernos onde moram os antepassados. O fim…

Peço desculpa desta fraqueza mas eu também sou deste país de bruxas, lobisomens e almas do outro mundo, de fado e fatalidade, de segredos e coincidências (Rússia 1917, Fátima 1917) de presságios e maus augúrios, do sonho e do nevoeiro… E se me socorro da linguagem espúria e estranha que ressuscita os nossos fantasmas colectivos apenas o faço para melhor olhar a realidade. A lucidez negativa do pessimismo é um bisturi implacável na cura dos abcessos de fixação.

E ao olhar a realidade portuguesa cujo único fito se cifra actualmente em ser Europa, em ser um bocado da Ibéria, em pedir esmola de um lugar na convivência de mercados de trocas e baldrocas, chego a pensar que se acabou de vez e de facto a História de Portugal e que os donos do ensino têm toda a razão quando, aos meninos e às meninas, impingem economia em vez de História… Não é moeda, esta.

Será que teremos finalmente de encarar o despojamento total, o zero do nosso destino? Como se D. Sebastião, finalmente, tivesse acabado de morrer… Mas a pulsão da morte, que inconscientemente nos atrai, tanto pode constituir a purificação ritual de nova iniciação como a tentação satânica da destruição, opondo-se ao acto divino do Criador.

Não tenho medo. Incorrigíveis, quando já não houver nada a lembrar e nada a esperar, senão uns hipotéticos encontros imediatos do 3º grau, ainda havemos de ter saudades… Como será o outro lado da esperança?

Ah, D. Sebastião! Daqui até ao dia 4 de Agosto, havemos de ajustar contas se o nevoeiro não levantar.

E até lá valho-me de João Bettencourt e do seu soneto PÁTRIA AD NAUSEAM, ele, que é açoreano e da Ilha de S. Jorge:

…..
povo de velas, lavras e luar,
ladrões do nada, conquistadores do ar,
cumprimos não sei onde Portugal.

Portugal não é um onde. Portugal não é um lugar. 
Portugal não é isto… Felizmente.»

Teresa Maria Martins de Carvalho
Final do artigo publicado no Jornal Novo em 28/3/78, republicado em D. Sebastião e Eu, Biblioteca do Pensamento Político, 1982

Do Pai:
«…
Para quem creia no Homem e no seu destino neste mundo, no carácter itinerante de cada um e também da Civilização, repugna crer na fatalidade cega de um fim como o que fica esboçado.

Presenciamos o choque de dois Mundos, o facto dominante deste século. 

Mas o Homem poderá sempre, se quiser, continuar a ser Homem. Para tal, impõe-se separar, em tudo e por tudo, os processos da Economia e da Política.

Importa repensar a Política e partir de posições de todo em todo novas. Importa buscar um Regime de Valores Humanos, alheado de tumultos, de abstracções e de ideologias, estribado firmemente no concreto, nas comunidades reais que protegem a Pessoa, na reflexão, na comunicação, na fidelidade.

Importa repensar as origens – a democracia grega, a república romana, a monarquia medieval – quando a verdade política era mais pura e os homens eram mais eles mesmos. E, à luz dos ensinamentos da Polis, da Urbs, ou dos Reinos, tudo poderá ser encarado – até a unidade política do Mundo.

Importa, portanto e para já, preparar as novas gerações na consciência da sua dignidade de Pessoas, na crítica radical de todos os “pseudos” em que vivemos, na imunidade aos excitantes nervosos da sensibilidade política, no gosto do estudo, dos descobrimentos e redescobrimentos, no amor do concreto, na humildade de espírito, na coragem da alma.

Desta maneira – mais que com a divulgação de corpos de doutrina – se prepararão hoje os obreiros da Cidade Nova de amanhã.»

Rivera Martins de Carvalho 
Final do texto “Análise política da Propaganda” publicado na Cidade Nova nº 2 da VI série (Abril de 1960) e republicado em Diário Político e outras páginas, Biblioteca do Pensamento Político, 1971

Tivessem sido eles agricultores, pescadores ou operários, contaria com o mesmo orgulho as suas histórias, pensamentos e vidas. Tenho a sorte de eles próprios falarem. E como falam…

Leonor Martins de Carvalho