sexta-feira, 7 de junho de 2013

CARTEIRA DE SENHORA

DIA 70
Porventura por se sentir cansada lembrou-se a carteira de alguns dos sofredores silenciosos deste país.
Tira fralda, põe fralda, tira bata, põe bata, agora a higiene, mais ou menos vigorosa, mais ou menos rigorosa, vira para um lado, vira para o outro, vira para cima, almofadas ora no meio das pernas, ora atrás das costas, a seguir de lado, cateter, injecções, comprimidos, soro, algália, sonda, oxigénio, hoje é dia de TAC vamos lá ao piso, o tecto a andar, espera pelo elevador, agora é o chão que anda, espera no corredor pela vez, tecto parado, entra no buraco negro da máquina e recomeça a dança do tecto até voltar ao já tão conhecido tecto inicial.
São virados e revirados os velhinhos acamados nos hospitais. Com sorte têm direito a um sorriso, uma festa, umas palavras, a que respondem com um olhar mortiço ou com o melhor sorriso que oferece a sua boca desdentada, porque as próteses são perigosas.
Experimenta-se dar uma colher de iogurte e outra. Não colabora? Então é porque não come. Enfia-se uma sonda e pronto. Trabalho facilitado. Poupa-se tempo a dar comida e remédios. Depois ainda se diz aos médicos que já não deglute. Este vai para casa entubado. 
Não fala, não se mexe? Mas sofre. Chora e reza em silêncio. 
É a família que luta por eles, que não desiste, que refila, que dá de comer. Os abandonados, os sem família ficam para ali. À espera. São descartáveis. Não vale a pena lutar, pensam alguns. Não lhes passa pela cabeça que ali está, em cada um deles, o seu avô ou a sua avó. Luta-se sempre pelos avós.
Também Portugal é virado e revirado, metem-lhe sondas sem precisar, tiram-lhe a capacidade de deglutir, fazem-lhe toda a espécie de exames, abandonam-no, deixam-no a sofrer e a rezar em silêncio mas nem sorrisos lhe oferecem. 
E para alguns é descartável. Poderia desaparecer à vontade, enterrado com a sua História. Valha-nos a família. Os portugueses.

Leonor Martins de Carvalho