segunda-feira, 24 de junho de 2013

CADERNOS INTERATLÂNTICOS (22)

Em matéria de manifestações de rua, dos países onde vivi, a Argentina ganha a perder de vista. Cazerolazos, cortes de ruas e avenidas, bloqueio de acessos aos aeroportos, “chuvas” de ovos e tomates, vandalismos variados, etc., quem desejar um pós-doutoramento na (in)disciplina deve lá passar uma temporada. Ali implantou-se a cultura do direito à apropriação selvagem do espaço público, sem qualquer consideração pelos demais habitantes.  Cinco ou seis cortes de vias principais no centro de Buenos Aires é a realidade diária. Há um par de meses assisti a sessenta deles, que estendiam-se do centro à periferia. Escusado será dizer que a vida de um infeliz obrigado a deslocar-se na Capital é transformada em qualquer coisa entre a tortura e o inferno.  Tudo isto vem a propósito da tão recente como surpreendente adesão do Brasil ao club dos “indignados”. De facto, é no mínimo curioso que um povo até então caracterizado por uma apatia autenticamente bovina resolva sair à rua protestar – e em alguns casos, depredar.  Hoje mesmo ouvi da boca de um amigo que lá tem o filho a viver: “o que assusta é que agora, pela primeira vez, vê-se o ódio estampado na cara das pessoas”.  Não estou de acordo.  O ódio já existia mas manifestava-se de outras formas, e há anos que vem sendo lenta mas habilmente trabalhado e canalizado para onde interessa.  Mas isto é tema para um outro caderno. Regressando à terra argentina, tenho muito viva na mente a recordação dos protestos de 2001, quando o país foi à quebra.  Exauridas as reservas internacionais que serviam de lastro à paridade peso-dólar, o governo procedeu ao bloqueio dos depósitos bancários, acto contínuo, operou uma brutal desvalorização cambial que levou a moeda estado-unidense de 1 a 4 pesos. “Devolvidos” os depósitos dois ou três anos depois, devidamente pulverizados, tratou-se de uma escandalosa expropriação que provocou seríssimas dificuldades a milhões de argentinos, boa parte atirados à miséria. Lembro-me muito bem dos protestos de massa em Buenos Aires, dos famigerados cacerolazos, das gigantescas concentrações de gente de todos os tipos, do espectáculo de indignação e desespero, da violência generalizada, da destruição material, dos mortos e feridos. Recordo a populaça furiosa diante do Congresso, a bater tachos e panelas contra a corrupção, a gestão danosa e o dolo, a patifaria generalizada da classe pulhítica, gritar aos deputados e senadores: que se vayan todos! Recordo quando a turbamulta, armada com marretas, avançava contra os balcões dos bancos e, entre brados de ladrones e nunca más un centavo en el banco, despedaçavam portas, montras e quase tudo o que viam pela frente.  Qual o resultado prático deste exercício de “acção directa”, desta bravata colectiva? Absolutamente nenhum. Os pulhíticos continuaram todos onde estavam e estão; o rico dinheirinho continuou a ser depositado nos bancos ladrones. Mais do que sobreviver, o pérfido sistema saiu fortalecido, i.e., ainda mais corrupto, ainda mais perverso. Não fosse ele produto de quem – desde o fundo da História – muito bem conhece a natureza humana, especialmente as suas fraquezas.  O que se passa no Patropi, enquanto pretensa revolta contra a corrupção escandalosa e a vergonhosa má gestão, ficará em águas de bacalhau. Suspeito que na terra do samba e da hegemonia vermelha o que está em jogo é a direcção suprema, disputada por duas facções da mesmíssima família: uma, que pretende conservar a antiga terrorista na presidência, outra, a que deseja o regresso – como “salvador perpétuo” – do analfabeto com alcunha de molusco cefalópode. Enquanto os cães ladram a moeda local despenha-se na vertical, mas ninguém dá por isso. Só existe o Brasil e o seu umbigo. Parece que o real, ao fim e ao cabo, é mesmo irreal.

Até para a semana.

Marcos Pinho de Escobar