segunda-feira, 25 de março de 2013

CADERNOS INTERATLÂNTICOS (9)

Reportando-me ao último Caderno – número 8 –, reproduzo aqui o prefácio escrito pelo deputado inglês Iain Sproat para “The Portuguese Answer”, obra do General Kaúlza de Arriaga.  

“A minha primeira e detalhada introdução aos problemas políticos e militares de Moçambique foi, talvez, um tanto insólita, para quem está a escrever o prefácio deste livro. Ela tinha-me sido feita pelos guerrilheiros da FRELIMO em seu quartel-general de Dar-es-Salaam. Nesta altura discuti com simpatia os seus objectivos e realizações; visitei o Instituto Moçambique, o qual atendia o lado civil das operações da FRELIMO; e li os escritos dos seus lideres, especialmente os do seu primeiro presidente, Eduardo Mondlane, por quem nutria uma considerável admiração.  Os guerrilheiros tinham conquistado a minha simpatia simplesmente porque pareciam ser os under-dogs.

Lembro-me muito bem das três denúncias que me foram feitas no quartel-general da FRELIMO.  A primeira era que controlava 20 por cento do território.  A segunda, que os aldeamentos, ou aldeias protegidas, em Moçambique, não eram muito diferentes dos campos de concentração nazis. E a terceira, que os portugueses brancos praticavam uma forma de discriminação racial ligeiramente diferente do Apartheid sul-africano, mas sem diferença quanto aos resultados produzidos nos africanos.

Já tinha visitado Moçambique em princípios de 1970, mas não tinha tido a oportunidade de verificar estas denúncias. Decidi que devia fazê-lo e pedi autorização para visitar as áreas de guerra na província. Recebi-a sem dificuldade, sendo informado de que poderia falar com qualquer pessoa que desejasse e visitar qualquer parte do território. Mais tarde requeri e obtive permissão para visitar Angola e a Guiné, podendo também deslocar-me a qualquer parte do território e falar com quem bem entendesse. Em momento algum e em nenhum território português foi-me imposta qualquer restrição.

Entretanto voltemos a Moçambique:  eu estava decidido a verificar, com a maior objectividade possível, as três denúncias que mencionei acima. Certamente que havia outras, mas estas pareceram-me ser matéria susceptível de prova definitiva, de um ou de outro modo.  E o que pude verificar foi que cada uma destas denúncias era totalmente falsa. Não que fossem exageros, ou que fossem 20 ou 50 por cento inexactas. Não tinham absolutamente nenhuma relação com a realidade. E esta afirmação não é um juízo ideológico nem é baseada em rumores: é uma constatação resultante de pura observação pessoal.

Pode-se pensar ter eu sido deliberadamente iludido pelas autoridades portuguesas e ter visto somente aquilo que os portugueses quisessem que eu visse – como, por exemplo, se observadores ingénuos estivessem na União Soviética na época de Estaline. Cheguei mesmo a pensar nisto enquanto viajava, mas estou convencido de que tal não foi o meu caso. Viajei muitos milhares de milhas através dos territórios portugueses, conversei com imenso número de pessoas, brancos e negros, das mais diversas origens e níveis distintos, gente por mim escolhida, nos momentos da minha preferência, em escolas e hospitais, em aldeamentos e na solidão das matas, durante operações militares, em igrejas, em cerimónias africanas, em modernos hotéis e em cabanas de barro.

Tudo isto não significa que gostei de tudo o que vi, nem significa que concordo com cada aspecto da actual politica portuguesa: não concordo. Também não significa que aprovo tudo o que os portugueses executaram no passado: decididamente não aprovo. Significa que, se a presente situação no sul da África está muito longe daquela que gostaria que fosse, e admitindo que é necessário lidar com uma situação tal como ela é e não como se gostaria que ela fosse, acredito que as politicas sociais actualmente implementadas pelos portugueses em seus territórios africanos são aquelas com as maiores probabilidades de proporcionar uma vida melhor aos seus habitantes, obtendo melhores resultados do que qualquer alternativa prática.

Os portugueses vêm combatendo em Angola desde 1961, na Guiné desde 1963 e em Moçambique desde 1964. Em minha opinião, o tremendo esforço que as autoridades portuguesas têm dispendido para melhorar as condições de vida dos africanos é o resultado directo da luta travada em cada um dos territórios. No entanto, qualquer que seja a causa deste esforço, o facto inegável é que, provavelmente agora, faz-se mais para melhorar as condições de vida dos africanos nos territórios portugueses do que em qualquer outra parte de África, negra ou branca. Na Guiné, por exemplo, cerca de 75% do tempo de um soldado são gastos em actividades civis – construção de estradas, casas, centros comunitários; no atendimento médico, no ensino de técnicas agrícolas mais modernas.

Os portugueses têm todo o direito de estarem orgulhosos pelo facto de terem contido militarmente as ameaças da guerrilha numa época onde outros – por exemplo, os americanos no Vietname – viram-se em grandes dificuldades. Ainda mais, os portugueses têm agora o direito de se orgulharem – independente do que tenha ocorrido no passado – por fazerem tanto para aliviar a miséria, difundir a formação escolar e, em geral, introduzir os benefícios do progresso social.

Mencionei acima que uma das denúncias que me tinham sido feitas pela FRELIMO era a de que os portugueses praticavam um tipo de discriminação racial que diferia apenas marginalmente do Apartheid. Isto é totalmente falso. Não existe e nunca existiu qualquer discriminação em termos de cor em nenhum território português.  Os portugueses são daltónicos por tradição. Nas forças armadas, por exemplo, há oficiais negros a comandarem soldados brancos, há oficiais milicianos negros, os soldados negros e brancos recebem exactamente o mesmo soldo e vivem exactamente nas mesmas condições.

Não se pode enfatizar com maior veemência a diferença entre a situação verificada nos territórios portugueses e aquela existente na África do Sul, ou na Rodésia, ou, de maneira inversa, em alguns países africanos negros.

O multirracialismo – como politica oficial e como vivência prática – nos territórios portugueses de África tem uma importância fundamental para a presente situação militar e, mais importante, para o desenvolvimento politico, tanto destes territórios, como daqueles adjacentes.

Em termos militares, o carácter multirracial das forças armadas faz com que seja extremamente difícil para os guerrilheiros descreverem o conflito como uma luta racial, de guerrilheiros negros contra portugueses brancos.

Em Moçambique metade das tropas regulares é composta por elementos de raça negra. De facto, se incluirmos – como deve de ser – a milícia e as populações organizadas em autodefesa (as quais, frequentemente, não contam com nenhum soldado branco na vizinhança), o número total de negros africanos armados que se opõem à FRELIMO em Moçambique, e ao MPLA em Angola, excede consideravelmente o número de brancos em armas. Tal situação seria totalmente impossível de ser mantida pelas autoridades portuguesas se estas não contassem com o apoio autêntico da vasta maioria da população. 

Em termos políticos, e num prazo mais longo, espero que a vivência multirracial existente nos territórios portugueses sirva de exemplo de tolerância para todos os países vizinhos, sejam estes comandados por negros ou brancos.

Estou convencido de que somente um multirracialismo autêntico pode dar alguma esperança à África e, de facto, ao resto do mundo.

O multirracialismo e a moderação existentes em Angola e Moçambique – proporcionando a igualdade de oportunidades de trabalho para brancos e negros – podem vir a ter um papel vital na redução da polarização racial no sul de África.

Portugal tem em suas mãos a possibilidade de oferecer um grande contributo à toda a humanidade – o contributo de demonstrar como homens e mulheres de raças diferentes podem viver juntos em paz.

Creio ser esta também a visão do General Kaúlza de Arriaga, que já demonstrou ser um militar brilhante e de pleno êxito, um homem de Estado que raciocina em termos globais, e um ser humano dotado de compaixão. Recomendo este livro ao mais largo público.

Iain Sproat

Câmara dos Comuns, 1972.”

Aí está, para reavivar um poucochinho a memória dos esquecidos e fortalecer o gentio em tempos de anemia espiritual.

Até para a semana.

Marcos Pinho de Escobar