sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

CARTEIRA DE SENHORA


DIA 46

Este tema já a carteira tinha exigido outro dia, mas ficou a arrefecer por mútuo acordo. Claro que me refiro ao outro, àquele a que pomposamente também chamam acordo (não connosco, não com os portugueses!), cujo objectivo parece ser “corrigir” a ortografia (como se precisasse!) invocando porventura razões de simplificação e aproximação entre escritas lusófonas. A simplificação complicou-se e a aproximação acabou distanciando.

Ambas somos contra este dito acordo. Ferozmente contra. Entre vários nomes bem feios, que me refreio de aqui nomear, chamamos-lhe “a coisa hortográfica”.

Somos contra não porque sejamos entendidas em filologia, linguística ou ciências similares. Nem sequer somos exímias na escrita. Sofremos ambas de graves dificuldades, seja na gramática, seja na pontuação.

A nossa oposição tem razões que a filologia desconhece, ou talvez não. Dir-se-á que não colhem por demasiado simplistas e nada científicas. São mais razões de afecto, mas também de afectos vive a língua. Se não gostarmos dela, quem gostará?

Amamos os escritores portugueses e brasileiros e a forma como esculpem a língua nas suas ortografias. Diferentes. Não se vislumbra a necessidade de um casamento combinado e forçado por pais castradores. Já não se usa.

Os argumentos dos sábios contra o acordo já foram divulgados e são eloquentes. Há-os para todos os gostos e feitios, desde os jurídicos aos linguísticos. São de fina ironia na sua maior parte e ao lê-los se compreende o absurdo de tudo isto.

Por acaso, gostava de assistir aos deputados que aprovaram este mostrengo a explicarem aos seus filhos e netos a razão da ortografia de determinadas palavras. Por causa do disparatado argumento da fonética, remete-se a etimologia para o exílio, perdendo-se a lógica e facilidade de compreensão que ajudavam a evitar erros. E descartam-se consoantes mudas como se não tivessem qualquer papel (nem fonético) e fossem um apêndice que pode ser extraído sem consequências.

Quiseram espartilhar recorrendo à lei do mínimo esforço, arrancando a ferros à língua-mãe grande parte da sua herança genética que já antes havia sido danificada. Ora, o afastamento da origem até nos distancia mais de outras línguas europeias, o que deveria ser uma contradição para estes senhores que tanto gostam da Europa.

Ninguém tem dúvidas que este acordo foi uma mera decisão política, impensada, pressionada por meia dúzia de pessoas que se julgam iluminadas. Uma decisão nada científica afinal, e também demonstrativa da falta de afecto. Mais uma consequência dos complexos parolos da classe política, parentes directos dos complexos de parte da sociedade portuguesa. Essas parolices levaram a quase tudo o que de mal foi feito neste país e esta é mais uma. O complexo de inferioridade a vir ao de cima logo que se invoca “modernidade” ou termo similar como argumento, quando o motivo principal escondido atrás da cortina é, como sempre, o olho torvo de alguém posto no lucro, como diria meu avô, citando Eça.

O lucro de alguém a justificar o assassinato de uma língua. Pois claro. Condiz com os valores actuais.

Já agora, na raiz da palavra acordo está cor, coração em latim. Mas não bateu nenhum coração neste caso. Só o tinir metálico de dinheiro nos sonhos de poucos, e que, ao que parece, se vão afinal desfazer em pó.

Por incrível que pareça, se não houver um pingo de decência, de hombridade, de respeito pelas gerações passadas, presentes e futuras e de capacidade de reconhecimento do erro, vamos pagar caro.

Começou com a destruição do património, seguiu-se a desvalorização da História, o fim da soberania e acaba com o assassinato da língua. Sem património, História e soberania e com uma língua abastardada, somos o quê? Um rebanho? Seremos ainda povo, país, Nação, Pátria?

Já nos estou a ver, na clandestinidade, a passar memórias, cultura e língua aos filhos e netos.

Aos políticos podemos pedir que sejam humildes e saibam reconhecer que erraram. É bem mais digno do que continuar a ser cúmplice de um crime. Não é tarde demais. Não há factos consumados. Há vontades. E escusam assim de passar a vergonha de vos aparecer pela frente a vontade férrea do povo português que dizem representar. Sejam Homens!

Quanto a nós, acima de tudo sejamos Portugueses, orgulhosos da sua língua e das suas raízes, fazendo tudo o que está ao nosso alcance para acabar com esta “coisa”.

Tinha intenções de fazer uma declaração de amor à língua portuguesa, mas a revolta atropelou-me. Ficará para um outro dia. O dia em que acabarem com o absurdo.

Leonor Martins de Carvalho