CARTEIRA DE SENHORA
DIA 46
Este tema já a
carteira tinha exigido outro dia, mas ficou a arrefecer por mútuo acordo. Claro
que me refiro ao outro, àquele a que pomposamente também chamam acordo (não
connosco, não com os portugueses!), cujo objectivo parece ser “corrigir” a ortografia
(como se precisasse!) invocando porventura razões de simplificação e
aproximação entre escritas lusófonas. A simplificação complicou-se e a
aproximação acabou distanciando.
Ambas somos contra
este dito acordo. Ferozmente contra. Entre vários nomes bem feios, que me
refreio de aqui nomear, chamamos-lhe “a coisa hortográfica”.
Somos contra não
porque sejamos entendidas em filologia, linguística ou ciências similares. Nem
sequer somos exímias na escrita. Sofremos ambas de graves dificuldades, seja na
gramática, seja na pontuação.
A nossa oposição tem
razões que a filologia desconhece, ou talvez não. Dir-se-á que não colhem por
demasiado simplistas e nada científicas. São mais razões de afecto, mas também
de afectos vive a língua. Se não gostarmos dela, quem gostará?
Amamos os escritores
portugueses e brasileiros e a forma como esculpem a língua nas suas
ortografias. Diferentes. Não se vislumbra a necessidade de um casamento
combinado e forçado por pais castradores. Já não se usa.
Os argumentos dos sábios
contra o acordo já foram divulgados e são eloquentes. Há-os para todos os
gostos e feitios, desde os jurídicos aos linguísticos. São de fina ironia na
sua maior parte e ao lê-los se compreende o absurdo de tudo isto.
Por acaso, gostava de
assistir aos deputados que aprovaram este mostrengo a explicarem aos seus
filhos e netos a razão da ortografia de determinadas palavras. Por causa do
disparatado argumento da fonética, remete-se a etimologia para o exílio,
perdendo-se a lógica e facilidade de compreensão que ajudavam a evitar erros. E
descartam-se consoantes mudas como se não tivessem qualquer papel (nem
fonético) e fossem um apêndice que pode ser extraído sem consequências.
Quiseram espartilhar
recorrendo à lei do mínimo esforço, arrancando a ferros à língua-mãe grande
parte da sua herança genética que já antes havia sido danificada. Ora, o
afastamento da origem até nos distancia mais de outras línguas europeias, o que
deveria ser uma contradição para estes senhores que tanto gostam da Europa.
Ninguém tem dúvidas
que este acordo foi uma mera decisão política, impensada, pressionada por meia
dúzia de pessoas que se julgam iluminadas. Uma decisão nada científica afinal,
e também demonstrativa da falta de afecto. Mais uma consequência dos complexos
parolos da classe política, parentes directos dos complexos de parte da
sociedade portuguesa. Essas parolices levaram a quase tudo o que de mal foi feito
neste país e esta é mais uma. O complexo de inferioridade a vir ao de cima logo
que se invoca “modernidade” ou termo similar como argumento, quando o motivo
principal escondido atrás da cortina é, como sempre, o olho torvo de alguém
posto no lucro, como diria meu avô, citando Eça.
O lucro de alguém a justificar
o assassinato de uma língua. Pois claro. Condiz com os valores actuais.
Já agora, na raiz da
palavra acordo está cor, coração em
latim. Mas não bateu nenhum coração neste caso. Só o tinir metálico de dinheiro
nos sonhos de poucos, e que, ao que parece, se vão afinal desfazer em pó.
Por incrível que pareça,
se não houver um pingo de decência, de hombridade, de respeito pelas gerações
passadas, presentes e futuras e de capacidade de reconhecimento do erro, vamos
pagar caro.
Começou com a
destruição do património, seguiu-se a desvalorização da História, o fim da
soberania e acaba com o assassinato da língua. Sem património, História e
soberania e com uma língua abastardada, somos o quê? Um rebanho? Seremos ainda
povo, país, Nação, Pátria?
Já nos estou a ver, na
clandestinidade, a passar memórias, cultura e língua aos filhos e netos.
Aos políticos podemos
pedir que sejam humildes e saibam reconhecer que erraram. É bem mais digno do
que continuar a ser cúmplice de um crime. Não é tarde demais. Não há factos
consumados. Há vontades. E escusam assim de passar a vergonha de vos aparecer
pela frente a vontade férrea do povo português que dizem representar. Sejam
Homens!
Quanto a nós, acima
de tudo sejamos Portugueses, orgulhosos da sua língua e das suas raízes,
fazendo tudo o que está ao nosso alcance para acabar com esta “coisa”.
Tinha intenções de
fazer uma declaração de amor à língua portuguesa, mas a revolta atropelou-me.
Ficará para um outro dia. O dia em que acabarem com o absurdo.
Leonor Martins de
Carvalho
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