CARTEIRA DE SENHORA
DIA 45
Perdeu-se nela
própria, a carteira. Garantiu-me ter um tema escolhido mas não o encontra. Só
estranho tal não ter acontecido há mais tempo. Afinal carteira de senhora que
não perca qualquer coisa não é carteira de senhora. Às vezes nem despejando
todo o seu conteúdo se encontra o procurado.
Ainda bem porque
assim tenho direito ao tema alternativo, que é sobre o meu objecto preferido. Mas
serão os livros objectos? Parece quase ofensivo. Porventura podem comparar-se
livros com garfos, mesas ou computadores? Os livros não encaixam numa qualquer
definição de objecto. Fazem-nos muito mais companhia do que certas pessoas,
somos fiéis a alguns até à morte, levamo-los para todos os sítios, dormimos a
seu lado, sonhamos com eles.
Deviam ter uma
classificação especial: família humana, género palavra, espécie literária,
subespécie indispensável.
Claro que há quem,
sabendo ler, afirme só ler livros “técnicos” (garanto que ouvi esta), ou os que
nem os tais técnicos lêem, nem sequer manuais de instruções. Talvez condescendam
nas “gordas” dos jornais…
Outros dizem ler mas afinal
entendem os livros como meras peças decorativas numa pequena estante na sala ou
a rodear a lareira.
Todos estes não fazem
nenhuma ideia do que perdem. Não conhecem a beleza daquele mundo, o mundo da
palavra escrita. Podia dizer que alguns não o merecerão mas seria injusta. Não
pode ser verdade.
Os livros são como
casas de outros. Entramos, passeamos na sala, nos quartos, pomo-nos à janela a
ver a vista ou descobrimos o baú misterioso no sótão. Podemos sentir-nos imediatamente
em casa, adoptá-la, ou nem querermos ouvir mais falar dela, fugindo a sete pés
e batendo com a porta.
Gostamos do cheiro a
livro novo e do cheiro de livros antigos. Gostamos de os tocar, acariciar,
abrir, folhear e ler ao acaso. Gostamos de ver as marcas deixadas por antigos
donos, os seus sublinhados, os comentários.
Gostamos de os
organizar, ter fichas para cada um, ou simplesmente deixá-los ao acaso
permitindo inesperadas descobertas.
Gostamos de os olhar
lembrando a história de cada um, de como escolhemos precisamente aquele de
entre todos os outros.
Gostamos de os
namorar. Tem mesmo de haver namoro. Afinal vamos levá-los para a nossa
intimidade.
Deixamo-los invadir o
nosso espaço como não deixamos mais ninguém. Se acaba o espaço nas estantes, após
o recurso às segundas filas e ocupados todos os outros buracos em cima, começam
os montes, espalhados por onde a casa permitir. Pudéssemos nós ter tempo e
dinheiro para todos os que sonhamos e não chegariam nem um prédio inteiro nem
uma vida inteira.
Não vivemos sem
livros. É impossível viver sem livros. Não quero viver sem livros. Não é viver.
Leonor Martins de
Carvalho
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