sexta-feira, 23 de novembro de 2012

CARTEIRA DE SENHORA


DIA 43

Já deram por isso, claro. A carteira é pior que sombra e segue-me onde quer que vá em trabalho, embora chegada ao destino tenha programa diferente. Um programa bem mais divertido com certeza mas desconheço-o, porque a carteira invoca segredo de justiça sem sequer se dignar informar-me a que processo se refere afinal. Saberei depois de sussurrado a jornalistas.

Essas viagens já levaram a duas crónicas escritas em aviões embora o da volta não conte. É estar à porta de casa.

Esta será a primeira crónica completamente escrita em exílio. Não há escolha possível e salta então a saudade para a linha da frente.

Não quero saber das definições esdrúxulas da saudade. Limito-me ao que sinto e parece-me simples. As saudades que provoca a lonjura, pelo menos. Não vou entrar nas outras.

Que fique claro que as saudades antecipadas são uma subespécie perfeitamente normal, não são doença rara a necessitar tratamento especial. Quando nos emocionamos nas despedidas, quando antes da partida procuramos reter na memória tudo o que nos rodeia, não é o exército das saudades em pleno campo de batalha?

Nunca estive emigrada nem nunca passei demasiado tempo fora do país. Simplesmente nunca aconteceu. Mas já senti a necessidade premente de ouvir e falar português. Uma saudade inesperada da língua, do seu som e sabor, que tive de matar sem contemplações.

Como todos, se tiver de emigrar, parto. Também não desisti ainda daquelas resoluções de adolescente, de voltas ao mundo em barco à vela, de estadias sem tempo nos mais longínquos locais. Em qualquer caso sei que a bordo segue a saudade.

Uma aflição, uma sensação indefinida que rebenta em torrente despoletada por uma qualquer insignificância.

Saudade da família, dos amigos, das caras, das vozes, das conversas, dos disparates, das meiguices. Mais tudo o que a memória nos vai deixando na baixa-mar.

Saudade da língua, da gente, do mar, da cor do mar, do sabor a mar, do cheiro a mar, do horizonte, do campo, da planície, do café, da comida, do bairro, do merceeiro, da cabeleireira, das memórias, do pequeno e do infinito…

Até temos saudade dos cheiros. O cheiro a terra molhada noutro país pode até ser agradável mas não me traz qualquer recordação. E embora alguns sons me toquem na memória, são só mera aproximação.

Quando a saudade avança decidida, só apetece voltar ao colo da mãe, ao colo do país, ao aconchego da lareira, às histórias antigas, aos serões, ao barulho das ondas, à vista sem fim…

Ver Lisboa a chegar, emociona sempre. Não somos nós a regressar é ela que regressa. É também o país que regressa. Afinal, trazemo-lo sempre connosco.

Com saudade,

Leonor Martins de Carvalho