sexta-feira, 16 de novembro de 2012

CARTEIRA DE SENHORA


DIA 42

Já não sei se é a carteira que anda a contracorrente do país se este a contracorrente da carteira. Inclino-me para a segunda hipótese só porque gosto de pensar que o país tem alguma coisa contra a carteira. Sempre é mais estimulante…

Em apenas duas coisas país e carteira estão em sintonia. Na tristeza, e também na revolta, a carteira acompanha o estado de espírito geral.

Ora uma situação revoltante há muitos anos, diria séculos, tem sido a destruição do nosso património cultural. De todo o património: imóvel, móvel e imaterial. Os edifícios, os quadros, as estátuas, as tradições, o artesanato, nada tem sido poupado.

Uma destruição quase despreocupada, como se o país pudesse prescindir sem remorsos da sua memória. Como se pedras e tradições fossem empecilhos, vá-se lá saber de quê.

Culpas? Da inocente ignorância à ganância, em conversa íntima com os famosos complexos de que os portugueses não se conseguem livrar. Adoram a palavra progresso mas dão-lhe uma interpretação muito própria, que envolve camartelo e cheiro a novo.

Entre demolições, abandonos ou mesmo restauros desastrosos, é também exemplo o parecer natural colocar estores de caixa exterior em janelas manuelinas. Se a janela sempre ali esteve, porque não haveria de ser tratada como as outras? Afinal é uma janela…

Tem sido assim. Um país que até nem sofreu bombardeamentos, ao contrário de muitos outros, devia ter a obrigação moral de preservar pelo menos o património imóvel. Bem sei que não há dinheiro, mas também sei que quando o houve a rodos, parecia que património se soletrava rotundas.

Felizmente há ainda muitas e boas vontades e exemplos extraordinários em vários Concelhos, mas não chega. Ouvir as recomendações de um senhor, cheio das melhores intenções, ao povo de uma aldeia sobre como combater o bicho da madeira que ataca impiedosamente os seus santos, esclareceu-me muito sobre a necessidade de aproveitar essas boas vontades e formá-las em medidas básicas. Sobre o que podem atrever-se a mexer para preservar e como fazê-lo, e sobre o que nem podem sequer sonhar em tocar sem recorrer a peritos.

O património classificado, sob a tutela de um Instituto, normalmente apodrece enquanto espera por pareceres e dinheiro. O peso burocrático ainda é muito. O que não está classificado anda ao deus-dará, aos trambolhões entre decisões de negociatas e falta de dinheiro para manutenção.

A devastação estende-se às tradições, da língua ao artesanato, passando pela música. Houve recolhas etnográficas em várias alturas, profissionais e amadoras, mas só alguns têm vontade de tentar recuperar o que anda perdido.

Até os deliciosos sotaques se estão a desvanecer. Há procissões a morrer.

Por caprichos de moda e mais com intuitos comerciais criam-se novas tradições infelizmente algumas importadas, desprezando-se as antigas.

Poucos conseguem convencer que o artesanato pode ser uma actividade rentável se bem organizada e que artesanato não são as bonecas de pano aprendidas em revistas importadas de lavores, que podem ser muito engraçadas mas não devem fazer esquecer o artesanato local e genuíno, prestes a dar o triste pio. Não podemos querer lojas de artesanato cópias fiéis das ditas revistas e iguaizinhas do Minho ao Algarve, nenhuma com produtos de tradição portuguesa.

Já existe algum sentido de preservação ainda ténue e por vezes mal direccionado. Parece primordial a formação das populações para que, detendo o conhecimento sobre o seu património, melhor o possa defender.

Neste tempo pode parecer a alguns de certa forma fútil ou a despropósito trazer este assunto à crónica. Não há tempos melhores ou piores. Todos os tempos são bons para não deixar esquecer o património, lembrar que também nós o somos e calculem que para a preservação, pelo menos do imaterial, nem dinheiro é preciso! Que possamos ajudar a salvar alguma coisa já era bom.

Ao deixar desfazer a memória, desfaz-se o país e nós nele.

Leonor Martins de Carvalho