sexta-feira, 19 de outubro de 2012

CARTEIRA DE SENHORA


DIA 38

Queria a carteira contar uma fábula. A sua fábula. Ficar tão conhecida quanto o corvo e a raposa de Esopo ou La Fontaine. Entrando a carteira na história, o formato mais adequado seria um apólogo. Mas recusa-se a ser objecto inanimado, não se quer comparar aos Relógios Falantes de D. Francisco Manuel de Melo. Compromisso negociado: será um apólogo em forma de fábula.

Apólogo-fábula da carteira, do filósofo, do coelho, da múmia e personagens equivalentes

(tinha de ser um título do tamanho do ego da carteira)

A carteira tinha assento naquele degrau já a descer para a segunda cave da escala social, seja qual for a medida utilizada. Ninguém dava por ela mas carregava todo um mundo lá dentro. Um mundo recheado de sonhos que aguardavam dias melhores.

Quis um dia um filósofo, que afinal o não era, talvez antes engenheiro domingueiro, e que se vestia de cor-de-rosa, ter a gentileza de lhe dirigir a palavra. Eram doces as suas palavras, falavam de auto-estradas, aeroportos, internet, novas oportunidades… Só lhe pedia que fizesse uma cruz num papel, curiosamente também a um domingo.

O país das carteiras acabou sendo governado pelo filósofo-engenheiro de fato cor-de-rosa até se perceber que negócios estranhos e mirabolantes tinham cavado um poço tão grande que só para o espectáculo do poço da morte servia. Tendo a carteira caído na água do poço, ficou, pois, toda encolhida.

Entretanto chamaram três reis de distantes reinos, especialistas em contas e poços da morte. Foi assim que se descobriu que o poço se tinha tornado fossa das Marianas.

As carteiras passaram a depender totalmente do país das salsichas e dos países parte de um clube para o qual a carteira nunca tinha marcado cruz em papel.

Não tardou que, num outro dia, o degrau da carteira tivesse a visita de um coelho de pêlo alaranjado convencido que era cantor, que lhe falou doce mas firmemente do poço, dos negócios, das vergonhas que tinham de ser cortadas com tesoura de tosquia. Atrás dele iam batendo portas. A carteira percebeu de imediato que teria de desenhar uma nova cruz num outro domingo.

Chegado ao poder, o coelho alaranjado, que adorava os três reis e o país das salsichas, fez tudo o que lhe foi pedido e ainda mais. A carteira que já tinha encolhido com a água do poço começou a desfazer-se.

O país das carteiras não era um reino. Em pequenos ciclos as carteiras escolhiam alguém para fazer não percebiam bem o quê, e acabavam por lhes dar a todos o cognome de múmias. Múmias passageiras a quem o destino das carteiras dizia pouco, e por isso pouco diziam. Assim, não havia a quem recorrer.

A carteira, com sonhos de subir ao rés-do-chão, está agora na quarta cave e juntaram-se-lhe muitas outras, todas esfarrapadas e esburacadas. Aprenderam que a política é dominada por filhos de Geppetto. Sonham juntas com tempos idos gloriosos e planeiam mudar o país. Para que finalmente venha a ser delas. O país das carteiras.

Moral: Em país desgovernado, sofrem as carteiras.

Leonor Martins de Carvalho