sexta-feira, 10 de agosto de 2012

CARTEIRA DE SENHORA


DIA 28

Não sei se levo a carteira comigo nas férias. Precisamos ambas de folguedo em folga mútua. Lembrou-se de repente que não tinha chegado a falar da visita aos veleiros da Tall Ships Race e teimou que seria hoje, mesmo já tendo passado quase um mês.

Fomos ter com os veleiros num sábado, depois das tentativas goradas de quinta e sexta-feira em que uma qualquer desculpa esfarrapada se bateu em braço de ferro ganhando por larga margem à vontade férrea da curiosidade.

Não sei se a carteira já era conhecida naquele meio. Sei que lhe foi recusada a entrada em todos os barcos. Nem me atrevi a perguntar porquê. Limitámo-nos, pois, a namorá-los de fora e ir bisbilhotando o que era possível.

No cais de Santa Apolónia deparámo-nos com Lisboa inteira mais arredores bem alargados, passeando como numa hora de ponta desordenada, deparando-se a cada meio passo com alguém em sentido contrário e sem espaço lateral de fuga, mas estranhamente ninguém se queixava.

Os portugueses de hoje poderão não ser marinheiros ou aventureiros, há até quem diga que por cá ficaram os que nunca partiram nem partiriam, os que recusam o sonho, mas não há dúvida que um qualquer gene recôndito deve ser comum. Os veleiros tornaram-se irresistível atracção, misterioso íman que quase adornava Lisboa, tal o êxodo em direcção ao rio.

Os pretendentes a marinheiros por uma hora, sujeitaram-se a muitas à procura de lugar para o carro, mais outras tantas para entrar nos barcos visitáveis e teimavam, mantendo-se firmes, à torreira do sol batido a vento, esperando a sua vez. Queriam mesmo sentir. Sentir o quê, afinal? Saudades dos mares por eles não navegados? Saudades de olhar o infinito?

Ficavam também pregados ao chão, fascinados a ver os rituais nos barcos que tinham festa privada, os marinheiros impecáveis, de branco, alinhados no convés, o silvo do apito quando os convidados subiam a bordo, a continência…

De polacos a holandeses, passando por britânicos, com um, dois, três ou quatro mastros, ali à mão de semear repousavam veleiros para todos os gostos, alinhados cais afora, enfeitados com bandeirinhas multicolores para a ocasião, fingindo-se bem comportados depois de terem andado na boa vida em alegre correria ao sabor do vento entre Saint Malo e Lisboa.

Desta vez não veio nenhum barco sul-americano, esses que costumam ser muito animados, sempre com música, cantoria e bailarico a bordo. De qualquer forma, o suficiente da crème de la crème dos grandes veleiros apareceu.

Contudo, o que interessava mesmo aos portugueses eram os nacionais, os “seus”.

Nem sabiam que um dos britânicos já tinha sido de portugueses, o Jolie Brise, um cutter que até ganhou a primeira etapa. Esconderam-no atrás de outro, como acontecera, aliás, na passagem anterior da regata por Lisboa.

Mas os conhecidos lugres Creoula e Stª. Maria Manuela, a caravela Vera Cruz e sobretudo o navio-escola Sagres, deixavam os portugueses embevecidos e orgulhosos.

Às famílias completas, de pequenos às cavalitas ou em carrinhos, juntavam-se fotógrafos amadores e profissionais nas filas, ora espraiando-se ao longo das barreiras metálicas que ladeavam o cais, ora formando simples esquadria, ora serpente em movimento, perseguindo as poucas sombras disponíveis.

Muitos, os que ainda sonham em partir sem destino, embarcariam naquele instante se lhes fosse dada a oportunidade. Voltariam a ficar os que não sentirão nunca o apelo.

No dia seguinte, para ver a parada, a carteira correu para a primeira fila. Agora tenho a certeza absoluta da sua nacionalidade.

O Tejo matou saudades de embalar e conduzir docemente grandes veleiros de velas desfraldadas e Lisboa despediu-se como se o hoje fosse ontem.

As Tágides, que se preparavam para fazer as malas porque há tempos aconselhadas a sair, redescobriram o sorriso, deslizando inspiradas à frente das proas, e decidiram ficar, esperando mais dias assim, em que Lisboa se redime.

Leonor Martins de Carvalho