CARTEIRA DE SENHORA
DIA
16
Temos, pois, memória selectiva cujos critérios variam consoante o seleccionador, mas alguns, sortudos (ou não), têm memória de elefante, conseguindo ter todos os jogadores à mão. Outros ainda têm a famigerada memória curta de que a política tanto se serve.
Leonor Martins de Carvalho
A
carteira manteve-se fechada toda a semana. Não me deixava procurar nem dizia
uma palavra. Andava eu já desesperada, porque afinal a crónica é dela, mas sou
utilizada abusivamente neste processo e tenho prazo para cumprir. Até que
quinta-feira, no próprio dia da entrega do texto, se lembra de falar em
memórias. Não sei o que lhe passou pela cabeça, porque é tema para tratados
maçudos encaixotados em calhamaços, não de crónicas blogueiras.
As
memórias crescem connosco mas não exactamente na mesma proporção. Podiam
acumular-se, mas não. Aos sete anos ainda nos lembramos de memórias dos cinco,
mas aos quinze já não são essas as que ficaram. Somos uma dispensa com número limitado
de prateleiras que só aguentam com alguns pacotes de memórias ao mesmo tempo. As
restantes vão desaparecendo por falta de espaço, ou então estão na arrecadação
da cave, da qual perdemos a chave do cadeado.
Temos, pois, memória selectiva cujos critérios variam consoante o seleccionador, mas alguns, sortudos (ou não), têm memória de elefante, conseguindo ter todos os jogadores à mão. Outros ainda têm a famigerada memória curta de que a política tanto se serve.
Certas
memórias selectivas e todas as de elefante podem ser um problema. Tomam conta
das suas próprias memórias mas também das que partilham com outros, e logo para
nosso azar, normalmente daquelas lembranças que, se ainda não esquecemos,
queríamos que tivessem sido condenadas à pena de morte. Fazem essas víboras
questão de nos lembrar essas proscritas em todas as ocasiões.
Das
recordações mais longínquas só retivemos as de grande impacto emocional. As que
nos fizeram chorar, espantar ou sorrir de arrebatamento. É por isso que uns têm
lembranças mais antigas do que outros. Às vezes as memórias de infância já só
nos chegam em sonhos: depois de os contar, percebi que alguns dos meus pesadelos
recorrentes na adolescência afinal eram memórias de menina assustada.
Na
prateleira de canto da dispensa, guardamos as que estão ligadas aos sentidos. Memórias
de cheiros, sons, sabores, paisagens ou toques, estão sempre lá, dormindo um
sono leve, e acordam da sesta ao mínimo roçagar.
Para
além das memórias nossas, há o ritual de passagem das memórias da família, as de
cada um dos pais, dos avós, dos “antigos”. Normalmente são histórias terríveis
ou então as anedóticas. Por mais estranho que pareça, aqui andam de namorico o
horror e a risota.
Numa
prateleira diferente conservamos ainda as memórias da aldeia, vila ou cidade
(embora aqui mais as do bairro). As histórias e memórias dos outros e da vida
em comunidade passam também de geração em geração. Contam-se e recontam-se essas
lembranças nas conversas de Inverno à lareira, nos bancos do largo da Igreja ou
nas festas de Verão, que sempre fazem lembrar outras.
Por
fim, a chamada prateleira patriótica, enfeitada por alguns mais entusiastas com
bandeiras e altifalantes a jorrar o hino, onde guardamos as memórias da nação,
a nossa história comum, o ontem do nosso porvir.
Nestas
alturas em que as turbulências financeiras fazem antever o emergir de outras
turbulências, a pouco e pouco a nossa mente vai acordando memórias que não são
nossas, antes pedaços de memórias de outros, noutros tempos, noutros lugares, legados
longínquos, ecos apavorados de histórias. Como se adivinhássemos o que vamos passar.
Como se o tivéssemos vivido, nós.
Devíamos
saber que sem memórias nossas, dos nossos, da comunidade e da nação deixamos de
ser gente, povo e país. Portugal foi, é e será o conjunto dessas nossas
memórias.
Somos
os seus guardiões e não podemos pois deixar que esvaziem a prateleira das
memórias de Portugal, ou desaparecemos no mapa das memórias de outros.
Leonor Martins de Carvalho
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