sexta-feira, 16 de março de 2012

CARTEIRA DE SENHORA

DIA 8
Esperava pelo usual inesperado que a déspota que dá pelo nome de carteira me costuma proporcionar, mas esta semana, quando vi o que me saiu em sorte, senti-me enganada. Estará a perder os seus dotes e a ficar um pouco previsível? Mais uma destas partidas e proponho que perca todos os direitos ao elevado estatuto de genuína carteira de senhora. Contudo, hoje não me resta senão agarrar o mote e arranjar-lhe umas voltas.
De há uns tempos para cá, gradual e sub-repticiamente, foi aterrando em Lisboa uma nova espécie de extraterrestre, que tomou a estranha forma de riscas cor-de-tijolo. A Câmara, aliada nesta invasão, chamou-lhes pomposamente ciclovias.
Embora seja uma invenção herdada do séc. XIX, os lisboetas, por nunca antes postos perante tal visão, assumem-nas como o maior símbolo de modernidade à face da Terra.
Claro que as tais riscas são finas. Quero eu dizer com isto que não se dão lá muito com o povo, não apreciam muitas misturas. São mais acomodadas, umas senhoras burguesas que gostam de andar a direito para não se cansarem. Nada de trepar colinas. Etapas com nomes como Castelo ou Graça, são disfarçadamente evitadas, porque prémios de montanha só na Volta a Portugal em bicicleta e em Lisboa ninguém se chama Joaquim Agostinho.
As ciclovias de Lisboa tinham de arranjar maneira de marcar a diferença em relação às ciclovias do resto do Mundo. Tinham de ser únicas, umas alfacinhas de gema. Lá se fez um brain-storming cujo resultado foi considerado genial e então saíram-se com uma característica única: as ciclovias lisboetas acabam abruptamente uns três metros antes de chegarem a uma qualquer rua ou avenida. Entram numa espécie de coma súbito e ressuscitam de forma imprevista outros três metros depois de se atravessar a dita via. Alguém ainda vai reivindicar esta invenção da ciclovia saltitante.
Há ainda um outro pequeno problema com as ciclovias. Esqueceram-se do manual de instruções. Pensaram que os alfacinhas não precisavam, que eram todos viajantes, altamente cosmopolitas, com verdadeiro conhecimento de causa. É verdade que se houvesse manual de instruções, a probabilidade de o lerem era exactamente igual à de lerem os manuais de qualquer equipamento, ou seja, muito próximo de zero, mas pelo menos sabia-se que existia.
Assim, os lisboetas pensam que as riscas cor-de-tijolo foram uma dádiva do céu, uma forma de eles próprios poderem passear ordeiramente porque tem divisória ao meio e tudo.
Há alturas do dia em que as pessoas ocupam todo espaço das ciclovias, às vezes sendo mesmo obrigadas a atrasar o passo na fila ordeira, situação que parece totalmente estranha ao povo português, quando ao seu lado repousa sózinho um enorme passeio de calçada à portuguesa. Parece que as riscas cor-de-tijolo conseguem disciplinar as pessoas só porque tem um risco branco no meio. Afinal era só preciso um risco no meio e ninguém tinha ainda descoberto…
Outros utilizadores frequentes são as crianças com os seus triciclos, os doidinhos por skate, e ainda os maníacos da saúde, nas suas corridas matinais ou de fim-de-tarde.
Até os turistas, tão habituados a elas no seu próprio país, acabam a mimetizar os autóctones e dão-lhes o mesmo tipo de uso, pensando talvez que estavam enganados e aquilo, embora muito parecido, não será uma ciclovia mas outra coisa qualquer. Outro dia fui surpreendida por um grupo de raparigas que, sob as ordens enérgicas da sua treinadora, fazia um treino de aquecimento, precisamente sobre a pista da ciclovia em frente ao seu Hotel. Duvido que tal utilização seja autorizada no seu país, mas em Portugal um dia vira moda. Ainda vamos exportar a ideia.
Pouco a pouco começaram a surgir os verdadeiros utentes das riscas cor-de-tijolo. Espaçados de umas horas entre si, mas vai havendo.
Bicicletas antigas, modernas, inteiriças ou dobráveis, bicicletas simples ou cheias de acessórios. Os que as domam são estudantes de mochila, na sua maioria, mas aparece de tudo. Miúdos, graúdos, mulheres com carteira e homens com mala, gente sem equipamento nenhum e gente equipada dos pés à cabeça, com capacete, luvas, joelheiras, cotoveleiras e tudo o mais que imaginem imprescindível ao que entendem ser o ciclismo. O prémio do melhor apetrecho vai para um capacete com luz traseira, encarnada e intermitente.
Na semana passada assisti, pela primeira vez, in loco, e prometo que tinha os óculos postos no local devido, ao cruzamento de duas bicicletas em plena ciclovia.
Não há dúvida. É mesmo o sinal de que já estamos ao nível dos dinamarqueses.

Leonor Martins de Carvalho