quarta-feira, 13 de julho de 2011

SEM AGENDA




Portugal, hoje -- pelos Meandros da Anti-Cidade (Parte III)


Concluo hoje a apresentação, já iniciada nas duas passadas semanas (Parte I e Parte II), do livro Manual de Crimes Urbanísticos -- Exemplos Práticos Para Compreender os Negócios Insustentáveis da Especulação Imobiliária, do urbanista Luís Ferreira Rodrigues e com prefácio de Gonçalo Ribeiro Telles, recentemente editado pela Guerra & Paz, SA, com uma breve abordagem do seu capítulo mais desenvolvido, denominado Exemplos básicos e práticos da criminalidade urbanística.


Neste capítulo e ao longo dos vinte e seis títulos que o compõem, é-nos proposta uma viagem guiada pelo variado, acidentado e tantas vezes misterioso mundo da criminalidade urbanística em Portugal. Criminalidade esta, relembro, que segundo o autor pode em muitíssimas situações significar muito mais do que o simples desrespeito dos regulamentos e das leis: ela é aqui tomada no seu correcto e mais lato significado, ou seja, como devendo ser aferida tanto na sua dimensão jurídica como na sua dimensão técnica e ética, e de acordo com o estabelecimento de uma clara hierarquia de valores (ambientais, culturais, monetários).


Nesta obra, Luís Rodrigues opta por não mencionar casos concretos em lugares reais, para evitar, tal como refere, estar a... «promover a descriminação aleatória de casos»... ao sabor da sua vontade. Considera sim ser preferível...«explicar o modelo abstracto dos problemas, deixando ao espírito crítico do leitor a possibilidade de enquadrar esse modelo numa realidade concreta: a sua».


Dada a variedade e extensão da matéria tratada, julgo que a melhor maneira de "abrir o apetite" ao leitor, sem perigo excessivo de o enfastiar, será dar-lhe a lista dos títulos tratados. Seguidamente o faço, pois. Depois disso, e para terminar, transcreverei, na sua maior parte, o conteúdo de um desses títulos, em jeito de simples amostra.


-- Problemas crónicos do urbanismo
-- Esticar ou espalmar a cidade?
-- A invasão das vias
-- A febre da torre
-- Turismo, PIN & Companhia Ilimitada
-- Velhos esquemas, novos esquemas
-- Loteamentos, cedências e compensações
-- O insustentável peso dos fundos de investimento imobiliário
-- Relativismo na estética urbana?
-- SRU & negócios de reabilitação
-- Irracionalidade do crescimento urbano
-- A técnica do cavalo de Tróia
-- O patinho feio da arquitectura paisagista
-- «É a economia, estúpido!»
-- Trânsito: um drama urbano
-- Afastamentos entre edificações
-- O novelo técnico e burocrático do processo administrativo
-- O cadastro urbano negligenciado
-- O mundo académico e profissional dos fazedores de cidades
-- Centros comerciais ou comércio nos centros?
-- O silêncio dos inocentes
-- Entre o interesse público e o interesse privado
-- Servidões administrativas e restrições de utilidade pública
-- A sustentabilidade não começa no fim
-- O despesismo consentido e sem sentido
-- O ataque à memória e ao património

A sustentabilidade não começa no fim


«(...) mais importantes do que os acessórios são os fundamentos das coisas.

Não raras vezes, verificamos que o enaltecimento do acessório nos faz esquecer aquilo que deveria ser tido por fundamental. Isso pode ser verificado no tão propalado enaltecimento da «arquitectura sustentável» como panaceia para todos os problemas do urbanismo contemporâneo português (e mundial).


Aderindo ao conceito de «desenvolvimento sustentável» -- que entrou em voga após a publicação do Relatório Brundtland pelas Nações Unidas em 1987 -- também a arquitectura pretendeu tornar-se mais respeitável por integrar nos seus processos conceptuais uma componente -- supostamente -- ambientalista.


A especificidade da arquitectura dita sustentável privilegia assim os aspectos técnicos que visam minimizar as impactos ambientais, sociais e económicos negativos que possam eventualmente ser gerados por um edifício. Questões como a melhoria do desempenho energético, térmico e acústico, o aproveitamento eficiente de materiais de construção, a orientação do edifício ou a sua implantação, constituem premissas fundamentais a que o desenho arquitectónico sustentável não se pode esquivar.


Na realidade, «arquitectura sustentável», assim como «desenvolvimento sustentável» não são mais do que pleonasmos: uma arquitectura insustentável é mera edificação e desenvolvimento insustentável traduz-se em mero crescimento. Uma simples casa alentejana de taipa pode ser classificada de arquitectura sustentável (utiliza materiais de construção do local, possui paredes suficientemente espessas para proporcionar conforto ambiental interior, etc.) e, no entanto, existe como arquétipo há centenas de anos.


Nesse sentido, só se começou a privilegiar o conceito de arquitectura sustentável quando se tomou consciência de que muita da arquitectura moderna e contemporânea realizada não passava de mera edificação -- e, como tal, tinha sido projectada apenas a pensar na rentabilização imobiliária e na fotogenia estética sem demais preocupações ambientais, sociais ou económicas.


Pressionados por directivas europeias e pelo aumento crescente do parque edificado (e dos impactos daí decorrentes), os decisores políticos e legisladores começaram a produzir abundante regulamentação tendo em vista a optimização da performance construtiva; surgiram assim documentos como o Regulamento das Características de Comportamento Térmico dos Edifícios, Regulamento dos Sistemas Energéticos de Climatização em Edifícios, Sistema de Certificação Energética, Normas Técnicas sobre Acessibilidades, Requisitos Acústicos dos Edifícios, etc.


Tudo isto é muito bom mas faz lembrar o homem que comeu demais e que procura atenuar a sensação de mal-estar com o máximo de pastilhas para a azia. Na realidade, a verdadeira sustentabilidade dispensa qualquer tipo de gadgets ou adereços supostamente sustentáveis porque essa dispensa é sinal de que a sustentabilidade existe à priori, ou seja, se um edifício não precisa de aquecimento central, isso significa que a construção é boa em si mesma e tem boa orientação solar, podendo dispensar esse aquecimento; se um edifício não precisa de gastar energia (solar ou outra) a manter caves de estacionamento secas com sistemas de drenagem, isso significa que a sua implantação em terrenos apropriados é boa em si mesma; se não precisa de câmaras de vigilância, isso significa que se situa num bairro seguro; se não precisa de estrutura reforçada, isso significa que não se situa numa zona sísmica ou arenosa; se não precisa de instalar sistemas de insonorização, isso significa que fica localizado numa zona calma e silenciosa, etc. Pensa-se muitas vezes que é toda uma parafernália de apetrechos e tecnologia o indicador inequívoco de sustentabilidade, quando é precisamente o contrário que se passa (figura acima).


Consideramos desejável que cada vez mais os edifícios tenham colectores solares, sistemas de recolha e reciclagem de lixo, formas de aproveitamento de águas da chuva, superfícies de revestimento vegetal, materiais de construção adequados, inovações tecnológicas que sirvam para o nosso conforto, etc. No entanto, não se deve esquecer que essas soluções a jusante devem funcionar num contexto urbano igualmente sustentável, e não como forma de atenuar (ou escamotear) problemas preexistentes de planeamento, que se encontram a montante.


Veja-se, a título de exemplo, algumas das recomendações que deveriam ser aplicadas a montante e que se encontram contidas no Manual para a Elaboração, Revisão e Análise de Planos Municipais de Ordenamento do Território (PMOT) na vertente da Protecção Civil, realizado pela Autoridade Nacional de Protecção Civil (1):


"(...) 7. A construção de estruturas, nomeadamente de edifícios de habitação, em zonas constituídas por solos susceptíveis de amplificar o sinal sísmico ou à liquefacção, deve ser restringida, ou seguir as metodologias construtivas necessárias para evitar o seu colapso.


(...) 13. Nas zonas susceptíveis de tsunamis deve ser restringida, em sede de PDM, a construção de hospitais, escolas e edifícios de grande concentração populacional ou com importância na gestão da emergência, bem como de eixos rodoviários ou ferroviários principais.


(...) 22. Devem ser identificadas cartograficamente nos PMOT as zonas sujeitas a cheias e para estas zonas deve ser proibida a construção ou reconstrução de hospitais, escolas, edifícios com importância na gestão da emergência, edifícios de habitação, edifícios de grande concentração populacional, de indústrias perigosas classificadas segundo a legislação em vigor, de eixos rodoviários ou ferroviários principais, centrais eléctricas e outras estruturas que ponham em perigo pessoas, bens e ambiente.


(...) 28. nas zonas do litoral vulneráveis à erosão é proibida a construção, devendo estas áreas ser destinadas a espaços abertos vocacionados para actividades de recreio e lazer podendo incluir eventuais estruturas ligeiras de apoio. (...)"


Antes de avaliar a sustentabilidade dos nossos edifícios, é de fundamental importância que a avaliemos nos planos que possibilitam a sua implantação. Raramente se ouve falar de «planos municipais sustentáveis» (2), pois, como facilmente se depreende, os planos não vendem, enquanto os edifícios sim (3).


Não basta que instalemos uns quantos gadgets nos edifícios para que isso nos iluda: somos consumidores e poluidores cada vez mais insaciáveis e intensivos. A melhor forma de lidar com esse facto não passa apenas por arranjar novas formas de produção energética ou métodos de reciclagem mas -- ainda que tal possa não nos agradar -- mudar alguns paradigmas de consumo e estilo de vida. Por consequência, estamos também obrigados a mudar alguns paradigmas de desenho urbano e arquitectónico; se não o fizermos, e ainda que não o saibamos, podemos estar inconscientemente a cometer crimes urbanísticos sob a capa do progresso.» Luís F. Rodrigues




(2) Reconheça-se, porém, o mérito de alguns municípios que têm realizado planos municipais de ambiente. Que a transposição dos seus resultados para os PMOT seja uma miragem, isso já será outra história.


(3) Quantas vezes não terá servido o epíteto «sustentável» de engodo publicitário para promover empreendimentos imobiliários claramente insustentáveis?

Francisco Cabral de Moncada