quarta-feira, 29 de junho de 2011

SEM AGENDA


Portugal, hoje -- pelos Meandros da Anti-Cidade (Parte I)

Eis um livro a meu ver excelente, para o português patriota ler: útil, claro e esclarecedor, oportuno, e julgo que raro, ou mesmo único, no seu género, tendo a intenção focada na identificação e explicação dos agentes e das causas -- e, inversamente, também na sugestão de possíveis formas de prevenção, defesa ou remédio -- relativas a muitos dos nossos mais inquietantes, penosos e, muitas vezes, misteriosos, problemas urbanísticos, que ora diariamente nos assaltam e obrigam a com eles convivermos, ora, imperceptível e continuadamente, vão estendendo, ou potencialmente adiando, os seus traiçoeiros efeitos a longo prazo -- desde a poluição urbana e a falta de espaços verdes, à proliferação dos bairros áridos e desumanizados e ao definhar dos antigos centros, ambas as situações geradoras de marginalidade e delinquência, à dependência excessiva do automóvel para as deslocações pendulares entre o centro e a periferia das grandes urbes ou entre os locais de trabalho dos pais e os locais de ensino dos filhos, passando pela "febre" especulativa ou parola da torre habitacional ou de escritórios, pelos congestionamentos de transito e as carências de estacionamento, pela multiplicação, como cogumelos, dos grandes centros comerciais e a depressão do comércio tradicional, pelos edifícios de estética dissonante em áreas históricas, pelas sobrecargas turísticas em zonas sensíveis, insustentáveis a prazo, pelos riscos da construção em leitos de cheia ou encostas instáveis, etc., etc., etc.

Manual de Crimes Urbanísticos -- Exemplos Práticos Para Compreender os Negócios Insustentáveis da Especulação Imobiliária, do urbanista, com actividade em Lisboa, Luís Ferreira Rodrigues (nascido em 1976, licenciado em Arquitectura do Planeamento Urbano e Territorial pela Faculdade de Arquitectura da UTL, mestre em Ordenamento do Território e Planeamento Ambiental pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da UNL) e com prefácio de Gonçalo Ribeiro Telles, saiu a público pela Guerra & Paz em Abril último, e, pelas suas qualidades acima referidas e por ser uma obra feita acessível para o grande público, merecerá provavelmente, assim me parece, ser um livro de cabeceira obrigatório de todos os que se interessem em perceber os mecanismos, simples ou complexos, geradores dos fenómenos urbanos, sobretudo de há algumas décadas a esta parte, em Portugal, fenómenos esses que nos surgem tantas vezes já só em forma acabada e sem que esta permita surpreender facilmente, para o não avisado, as verdadeiras causas e motivações que os originaram. Com efeito, logo na Introdução do livro, diz o autor: «Estando o crescimento progressivo e desqualificado das cidades associado aos negócios ilícitos ou inadequados da «especulação imobiliária» (conceito que tentaremos clarificar mais adiante), urgia tomar uma atitude de cidadania: informar os cidadãos dos problemas subjacentes aos processos de crescimento urbano, munindo-os da informação básica necessária para diagnosticar o que de errado se passa em muitos desses processos.»

E mais adiante: «Ninguém ficará especialista em urbanismo ao ler este manual. Contudo, também não é isso que se pretende: pretende-se apenas despertar a consciência cívica para as inúmeras implicações e consequências económicas, estéticas, ambientais e sociais que determinadas implicações urbanísticas imprimem no mundo que nos rodeia»...«Tendo consciência de que muitas pessoas têm dificuldade em visualizar mentalmente o conteúdo de uma matéria que é, não só «especial», mas também «espacial», algumas dezenas de desenhos tentarão, de forma lúdica e esclarecedora, ilustrar a ideia que se pretende transmitir.»

Passado um capítulo prévio mais técnico, em que são clarificados alguns conceitos urbanísticos (solo; planos municipais de ordenamento do território -- PMOT, segundo três tipos: Planos Directores Municipais (PDM), Planos de Urbanização (PU) e Planos de Pormenor (PP); parcelas, domínio público, lotes e loteamentos; áreas de construção e de implantação; índices de ocupação, utilização e impermeabilização; cotas, cérceas e alinhamentos), o capítulo seguinte, chamado Princípios básicos para compreender a criminalidade urbanística, abre com a seguinte pergunta:

O que é um crime urbanístico?

Para Luís Rodrigues, apesar da subjectividade deste conceito («um edifício, por exemplo, parecerá um monstro a algumas pessoas, enquanto para outras parecerá uma obra de arte»), subjectividade essa que só tem vindo a ser ultrapassada através da forma jurídica, nomeadamente os instrumentos de gestão territorial, entre os quais se inserem os PMOT e demais regulamentos urbanísticos (Regulamento Geral de Edificações Urbanas, regulamentos municipais de urbanização, etc.), um conjunto de projectos urbanísticos pode muito bem cumprir todos os PMOT e regulamentos vigentes, mas a sua inserção e/ou impacto no tecido urbano produzir impactos perturbadores a vários níveis, a saber: económicos (prejuízos para o interesse privado ou público), ambientais (perturbação ou destruição de determinados sistemas ambientais), estéticos (conflito com uma sensibilidade estética colectiva) e culturais (destruição ou desvalorização patrimonial e cultural de um local). Neste sentido, defende o autor que podem ser consideradas duas formas de criminalidade urbanística: uma...«a ser aferida na sua dimensão jurídica» e outra...«a ser aferida na sua dimensão técnica e ética.», sendo para tal, no entanto, indispensável...«que se construa uma clara hierarquia de valores.» (ambientais, culturais, monetários, que adiante são tratados). E mais: «Não pensemos que as leis e os regulamentos são infalíveis, traduzindo verdades universais acerca do urbanismo; contudo, também não devemos pensar que qualquer opinião pessoal é válida e deve impor-se injustificadamente à ordem jurídica existente. Para resolver este conflito, nada melhor do que o clássico método dialéctico: entre a tese e a antítese, há que escolher a síntese.» E remata este ponto, dizendo: «Ao longo deste manual, iremos verificar como um «crime urbanístico» pode assumir várias formas (muitas delas, perfeitamente legais e consentidas), evidenciando-se assim a questão sobre até que ponto a existência de leis (como aquelas que definem crime urbanístico) é insuficiente para travar empreendimentos especulativos que visam a mera obtenção de lucro à custa da degradação do território.»

Neste contexto, são seguidamente abordados os três paradigmas de valorização urbanística julgados pertinentes: a) A valorização monetária -- correspondente à tradução puramente quantitativa do custo/receita decorrente de uma intervenção -- que se constata ser a única motivação a justificar os esforços da esmagadora maioria dos agentes urbanísticos; b) A valorização ambiental, quer numa perspectiva de valorização intrínseca (independentemente da capacidade imobiliária de uma determinada intervenção), quer numa de valorização utilitarista (traduzível em consequências positivas -- e quantificáveis -- para a comunidade. Por exemplo, no caso da criação de um jardim público,...o «número de pessoas que frequentam o jardim, a quantificação da capacidade de absorção de dióxido de carbono proporcionada pela vegetação existente, a quantificação da área permeável de solo, etc.) A este propósito, o autor adianta: «Alguns especialistas consideram que apenas a visão instrumental/utilitarista e a sua tradução monetária é apropriada para lidar com as questões de gestão ambiental»...«Compreende-se que, se certos bens ou serviços que os sistemas naturais providenciam não fossem objecto de conversão monetária, a sua já débil conservação poderia ficar ainda mais em risco. Contudo, é necessário que deixemos de encarar estes valores como o parente pobre do desenvolvimento urbanístico, adicionando-lhes, sem timidez, uma quota-parte de mérito intrínseco.»; c) A valorização cultural (consubstanciada em elementos materiais ou imateriais -- paisagem, arte e história, saberes, lazeres, gastronomia, etc.) que, tal como os valores ambientais, também pode assumir uma dupla expressão...«quantitativa e qualitativa (na sua vertente utilitarista) ou apenas qualitativa (na sua vertente intrínseca).» Sendo convencional, pode também ser convertida em valor monetário.

No título seguinte, dedicado ao importantíssimo aspecto, pois que tanto explica, do financiamento local e sua dependência da construção e, com referência aos níveis de definição e transformação do território, o autor identifica, muito para além da Administração Central, os municípios, como protagonistas principais dessa transformação a nível macro, sendo eles que, estando legitimados para aprovar os PMOT, ...«definem as regras e as normas de ocupação do solo (zonamentos, índices de edificabilidade, etc.) através das quais o mercado imobiliário vai actuar.»...«Na maioria dos casos, as receitas dos municípios encontram-se demasiado dependentes da actividade económica promovida pelo sector imobiliário e não por qualquer actividade produtiva que alguém possa desenvolver num terreno onde não é permitida construção. Assim o atesta o relatório produzido para o XIV Congresso da Associação Nacional dos Municípios de 2004 e que aqui transcrevemos em parte:

''Os municípios dispõem de recursos próprios para financiarem a sua actividade. Estes compreendem impostos,...,tarifas, licenças e penalidades, alienação de património e outras receitas... Na generalidade dos municípios, todas estas receitas estão demasiado dependentes da actividade económica de um único sector, o imobiliário...

Esta concentração avultada de recursos próprios nas actividades imobiliárias tem vários inconvenientes.

Primeiro, em termos macroeconómicos, consubstancia uma discriminação negativa do investimento imobiliário face a outras aplicações de riqueza. O solo e as edificações são praticamente as únicas formas de riqueza que pagam imposto sobre a posse e a transmissão... Segundo, é uma aproximação insuficiente ao princípio do utilizador-pagador pois isenta de contribuição para um determinado município todos os utentes de infra-estruturas locais que não tenham património nesse concelho... Terceiro, as receitas próprias ficam muito vulneráveis às crises específicas de um único sector... Quarto, a receita do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) é pouco elástica...''

...«Além dos quatro aspectos negativos referidos no relatório acima (essencialmente de carácter economicista), talvez o aspecto mais grave do financiamento municipal se consubstancie na total ausência de uma concepção sustentável e produtiva do solo em espaço urbano», a qual...«não tem de ser apenas agrícola», no entanto...«tem de se nortear por critérios de sustentabilidade económica e biofísica de longo prazo»...«Em síntese, o quadro contabilístico da Administração Local pode resumir-se ao seguinte: finanças municipais saudáveis equivalem a mais construção e mais população.

Infelizmente, esta saúde saúde financeira não implica necessariamente sustentabilidade: exigindo-se crescimento contínuo para duas variáveis em que a manutenção dessa premissa é insustentável (já que tanto a população como a construção não podem crescer de forma indefinida), todos os alicerces da contabilidade autárquica assentam num pântano. Esta situação tenderá a acentuar a tendência para incentivar as economias de escala (potencialmente geradoras de mais receitas), privilegiando a construção nos grandes centros urbanos - que serão vistos como panaceia para o problema: se o país não pode crescer uniformemente, terá de crescer (ou condensar-se) onde o mercado (ainda) o exige, ou seja, nas grandes cidades.»

...«Uma expansão urbana municipal que se processa ignorando a perda de funcionalidades diversificadas do seu território (favorecendo apenas os usos habitacionais, comerciais e serviços) não potencia sinergias económicas que poderiam gerar formas alternativas de recursos materiais e humanos e consequente desenvolvimento».

Na próxima semana tenciono continuar a apresentação deste importante livro, recomeçando com o título referente à valorização económica de uma propriedade -- nível micro.

Francisco Cabral de Moncada