quarta-feira, 15 de junho de 2011

SEM AGENDA


As Semanas de Estudos Doutrinários -- Coimbra, 1959 e 1960 (Parte I)

Trago hoje aqui à luz do dia, pode dizer-se que retiradas do baú do esquecimento, as I e II Semanas de Estudos Doutrinários, realizadas nos agora já recuados anos em 1959 e 1960, em Coimbra. Em Janeiro de 1960 foi publicado o volume de teses, e respectivas discussões, da I Semana, decorrida de 23 a 25 de Janeiro do ano anterior. Na Breve Notícia nela incluída, pag. 321, pode ler-se: «...Esse pequeno punhado de jovens, sem partidos, nem grupos, nem compromissos, nem ambições inconfessáveis, propôs-se promover uma reunião em que os portugueses de todas as correntes, em estudo aberto e desapaixonado, lançassem as bases de um corpo doutrinal que se ajustasse a essa realidade histórica a que chamamos Portugal. (...) Não lhes interessavam, em si mesmos, correntes ideológicas ou construções filosóficas, mas antes e somente a estruturação de um corpo doutrinário moderno que se ajustasse à realidade portuguesa...» As Semanas foram na altura consideradas um êxito pelos organizadores, dada a qualidade e o nível de participação dos intervenientes, praticamente todos monárquicos, e a «...alegria nova, no coração...», com que dispersaram. Entre todos, permita-se-me citar alguns dos nomes presentes na I Semana: Braga da Cruz, Miranda Barbosa, José Bayolo Pacheco de Amorim, Fernando de Souza, João Ameal, Mello Beirão, Goulart Nogueira, António José de Brito, Gastão da Cunha Ferreira, Fernando Amado, Jacinto Ferreira, Augusto de Moraes Sarmento, Conde de Aurora, Simeão Pinto de Mesquita, Francisco de Sousa Tavares; e na II Semana: a grande maioria destes e mais Costa Pimpão, Mário Saraiva, D. Pedro da Câmara Leme, Quelhas Bigotte, Fernando Pacheco de Amorim.

Por me parecer, precisamente, que muitos dos pensamentos e aspirações ali expressos, conservam, hoje ainda, grande actualidade e potencial inspirador para todos os monárquicos, aliás para todos os portugueses genuínos, é que resolvi trazer aqui a sua notícia. É claro que as várias tendências e sensibilidades presentes, desde a demo-liberal, defendendo os partidos políticos como actores da governação, até à que se poderia designar, porventura com pouco rigor, por "monarquia fascista", passando pela corrente integralista, maioritária, acabaram, natural e inevitavelmente, por se manifestar no decorrer dos debates, se bem que quase sempre só de forma implícita e sempre com a maior elegância, na generalidade dos casos.

A mero título de exemplo, transcrevo seguidamente o texto quase completo de um dos debates da I Semana, seguido do respectivo comentário de Henrique Barrilaro Ruas.

A NECESSIDADE DA REALEZA PARA A EXISTÊNCIA DE UM AUTÊNTICO GOVERNO DE AUTORIDADE, por Fernando Guedes (Esquema da comunicação lida na sessão da manhã do dia 25-1-59)

I. Noção de governo. Relação entre governo e governados. -- «Toda a acção do governo é uma acção de violência, de oposição, de força. Governar é coordenar: coordena-se a bem de quem obedece, coordena-se à força quem obedece. Quem governa manda. E quem manda faz-se obedecer, primeiro, pela persuasão, depois, quando esta é impotente, pela força. Ou o poder reside num homem, ou num grupo de homens, ou numa multidão -- a sua base essencial é essa e não pode ser outra.» -- ALFREDO PIMENTA.

II. Legitimidade do governo. Governo legítimo de direito e governo legítimo de facto. Distinção entre ambos. -- «A legitimidade resulta de duas circunstâncias diferentes e essenciais: justiça de aquisição e diuturnidade de posse (...). A diuturnidade de posse, uma vez que seja pacífica e não tenha lugar por intervenção permanente da força externa é condição suficiente para fazer nascer a legitimidade: não que a justiça de aquisição falte absolutamente, porque se faltasse impossível seria que viesse a haver legitimidade; mas em lugar de verificar-se de um só jacto (...) verifica-se a pouco e pouco e sucessivamente». -- GAMA e CASTRO.

III. O bem comum. -- capa de arlequim mas que seriamente ainda tem um alto significado. -- «O bem comum é «uma série de recursos materiais, intelectuais e morais que, preparados e mantidos por aqueles que têm o encargo disso, facilitam aos membros da comunidade a execução da sua missão». -- DU PASSAGE.

IV. A autoridade. -- requisito essencial de um bom governo. -- « O governo de muitos não é bom. Que um só mande». -- HOMERO.

V. A tirania. Distinção entre tirania e governo autoritário. -- «É preciso não confundir despotismo com tirania, como geralmente se faz. (...) Tanto no despotismo como na tirania, o procedimento de quem manda é arbitrário; mas no primeiro caso é arbitrário por falta de lei e no segundo porque se abusa, porque se despreza, ou porque se calca a lei. A tirania é sempre atroz e injusta; o uso do despotismo é indispensável em todos os governos, faz a essência de muitos, e pode ser bom ou mau conforme aquele que o emprega (...) A significação da palavra grega Déspotes nunca teve nada de odioso; porque os termos que em latim lhe corresponde, são -- Rex, imperador». -- GAMA e CASTRO.

VI. A necessidade da realeza para a existência de um autêntico regime de autoridade. -- «O hitlerismo alemão e o carmonismo português, o callismo mexicano são aspirações para a monarquia, que se deixaram ficar a meio caminho: porque usufruem da parte exterior e material da instituição (unidade de mando), que pode bastar de momento e produzir excelentes frutos, mas não conquistam a parte profunda e íntima (continuidade hereditária) que é a que justifica, cimenta e assegura essa unidade. Não basta estar convencido de que o mando deve ser único; é preciso saber onde deve buscar-se a razão dessa unidade». -- J. M. PEMAN.

Intervenções a esta tese:

Do Prof. Doutor Jacinto Ferreira: -- Pretendo apenas fazer uma sugestão, que seria a seguinte: numa época em que estamos saturados de autoridade e sequiosos de liberdades, talvez nos fosse conveniente acentuar que, na realidade, um governo de autoridade, mas de autoridade autêntica, é condição basilar para a usufruição das liberdades legítimas. (...)

Do Sr. Dr. Sousa Machado: -- Quero apenas focar um ponto: é que esta autoridade de que se falou na tese, é uma autoridade bem diferente daquela do despotismo ou da tirania. (...) É uma autoridade porque tem o amor dos súbditos, quer dizer, é uma autoridade a que todos nós nos submetemos voluntariamente. É esse o grande segredo da Monarquia. É que na monarquia obedece-se por vontade, obedece-se por amor, enquanto nesses regimes que Peman criticou, nunca se encontrou senão a autoridade da força necessária. (...)

Do Sr. Dr. Manuel Anselmo: -- (...) É que nós estamos a raciocinar dentro da tradição e da velha construção da monarquia portuguesa. Essa construção implica duas realidades: O Estado de que o Rei é o chefe e o Poder Real. (...) Penso que o Sr. Fernando Guedes quis apenas chamar a atenção dos assistentes para a necessidade de definir qual é a estrutura do Estado sobre que se exerce o poder real e, ao mesmo tempo, definir a natureza desse poder, se é um poder absoluto, ou se é um poder liberal, ou se é um poder sui generis em que as duas hipóteses se põem. (...) Eu queria manifestar-me nesse sentido. (...) Durante a primeira dinastia, ou a segunda, ou até às concepções que culminaram e fecharam esse epílogo maravilhoso de glória -- apesar da derrota que foi Evora-Monte -- as ideias naturalmente portuguesas, tradicionalmente portuguesas, tinham em vista a liberdade do rei, para, sendo livre, representar, em última instância, a decisão do poder. (...) Da natureza sui generis do poder real resulta aquilo que o Sr. Prof. Jacinto Ferreira disse -- e muito bem -- que são as liberdades, das quais nós todos estamos ciosos e desejosos. (...) Penso, porém, que haverá, talvez, um equívoco em situar nesta tradição intelectual e cultural da monarquia portuguesa, factos históricos, como são o fascismo ou o hitlerismo, que nada têm de comum com a experiência portuguesa. (...) Não quero dizer com isto que nos possamos desinteressar nem do fascismo, nem do hitlerismo, nem do comunismo, nem de todos os vários «ismos» que nos foram, infelizmente, contemporâneos, porque neles se encontra também um comportamento humano, uma atitude revolucionária que, na revisão geral de todos os valores nos pode ser útil considerar. (...)

Do Sr. Dr. Caetano Beirão: -- parece que aquela observação do Sr. Dr. Jacinto Ferreira pode servir em sentido contrário. Quer dizer: uma vez que hoje há o tal desejo de liberdade, é preciso ter muito cuidado e nunca deixar que essa ânsia caia em conteúdo político. (...) Portanto, é exactamente o momento mais necessário para se falar em autoridade...

Do Sr. Dr. Fernando Amado: -- (...) havia uns dois esclarecimentos a pôr. O primeiro é que nós, em geral, empregamos a palavra absolutismo no mesmo sentido de despotismo, mas esse não é o sentido da História e aquele em que os nossos reis poderiam empregar essa palavra. (...) Absolutismo, etimologicamente, quer dizer «livre», e só isso! (...) Assim, quando se falava dos antigos reis absolutos, não era de reis despóticos, nem no sentido em que o ilustre conferente abordou este assunto. É uma coisa mesmo completamente, completamente diferente! (...) Outro assunto -- esse, é claro, não posso mais do que esquematizá-lo -- é mostrar como a autoridade e a liberdade são duas faces do mesmo problema -- o que seria fácil de demonstrar filosoficamente. (...) Por isso, quando o Sr. Prof. Jacinto Ferreira, e muito oportunamente, disse que nós estávamos fartos de autoridade, eu peço vénia para discordar nesse ponto. É que nós não estamos fartos de autoridade; nós estamos fartos de autoritarismo, o que é uma coisa muitíssimo diferente, no sentido em que o autoritarismo é, simplesmente, o mau uso e o abuso da autoridade.

COMENTÁRIO (do Dr. Henrique Barrilaro Ruas):

1. Conhecendo apenas o esquema desta tese (que é fácil imaginar cheia de motivos de interesse), não me é possível desenvolver um autêntico comentário.

2. Talvez se possa extrair, do pensamento expresso pelo A. e pelos intervenientes, a seguinte linha comum:

a) o Rei é a autoridade autêntica: poder legítimo pela origem, é também nele que mais facilmente reside a legitimidade de exercício;

b) a autoridade legítima prepara e mantém o bem comum;

c) o bem comum é uma situação ou estado de coisas tal, que liberta os homens para o cumprimento do seu destino;

d) para conseguir o bem comum a autoridade tem de ser livre na sua esfera própria;

e) a liberdade própria da autoridade (isto é, em sentido tradicional, o absolutismo real) inclui o poder (direito, dever e possibilidade) de coagir;

f) quando o detentor da autoridade exerce qualquer dos seus poderes contra o bem comum, ou não chega a ganhar a legitimidade de exercício, ou perde a legitimidade de origem;

g) a legitimidade de origem deve situar-se num plano mais profundo que o da opinião e da vontade -- a hereditariedade.

3. Para este resumo, socorri-me, como facilmente se reconhecerá, especialmente do esquema do trabalho de Fernando Guedes e das excelentes intervenções do Dr. Manuel Anselmo e do Dr. Fernando Amado. Mas devo ainda relevar que o pensamento de Alberto de Monsaraz recordado pelo Dr. Sousa Machado pode afinal servir de remate aquela doutrina; a dedicação, o amor aos Reis é corolário do princípio da hereditariedade; exactamente porque os reis não são criaturas da vontade dos grupos é que podem ser objecto do amor de todos; porque a origem da autoridade real (a origem fenoménica dessa autoridade: não me estou a referir à origem metafísica) é o nascimento, toda a Nação pode amar o Príncipe como a família ama a criança nascida no seu seio; e assim, se de algum modo o Rei é o pai do seu Povo, também de algum modo é filho do seu Povo. Só em Monarquia esta interrelação é possível; em República, o Chefe de Estado aparece em estado adulto e é em vida que normalmente desaparece. Gerado, como Chefe, pela macânica constitucional e por ela morto, não é conatural aos homens e à Nação: assim lhe pode competir o nome de Chefe de Estado, mas nunca o de Chefe da Nação. E a Nação pode respeitá-lo obedecer-lhe, exaltá-lo; pode mesmo fazer dele objecto de paixão: o amor, porém, é de outra ordem. H. B. R.

Francisco Cabral de Moncada