quarta-feira, 25 de maio de 2011

SEM AGENDA



O Vírus de Derrida


Adivinham os meus caros leitores o que é este edifício?... Quererão fazer um pequeno esforço e arriscar? Posso adiantar que não é resultado do terrorismo islâmico...; nem de um sismo de grau 8...; nem de uma implosão mal calculada... Vá lá, não conseguem mesmo?... Então pronto, eu digo: é apenas mais uma simpática surpresa -- uma das últimas -- do nosso querido e idolatrado Frank Gehry superstar, e trata-se, nem mais, ladies and gentlemen,...que do magnífico, do fantástico, do incomparável... Lou Ruvo Center for Brain Health, em Las Vegas, EUA, destinado ao tratamento, diagnóstico precoce e prevenção de doenças como o Alzheimer, o Parkinson, etc. Sem dúvida apropriado, não lhes parece?... Sem mais comentários.


Falar de Gehry é falar do que poderia chamar-se o "bando dos cinco", incluindo, para além deste, os nomes sonantes de Peter Eisenmam, David Liebeskind, Rem Koolhaas e Zaha Hadid, havendo ainda um razoável número de outros menos conhecidos. São os chamados arquitectos desconstructivistas, um dos últimos e talvez o máximo must da arquitectura mundial, e o sector mais "festivo" do seu starsystem. Estes nomes e as respectivas "obras primas" têm vindo a ser, há cerca de duas décadas a esta parte, sinónimo certo de excitação e de sucesso e, portanto, suprema tentação para empresários, instituições e políticos em busca de rápida promoção e reconhecimento, em todo o mundo, como aconteceu também já entre nós, primeiro no Porto, com a Casa da Música, e depois em Lisboa, nesta última cidade, porém, felizmente não concretizada, para bem dos alfacinhas e do autarca de então, o Dr. Santana Lopes.


Como terá sido possível chegar até isto? O Desconstuctivismo é ...«um estilo constructivo caracterizado por formas despedaçadas, estilhaçadas ou torcidas, evocativas de destruição física, em contradição evidente com a razão de ser primordial da arquitectura, que é a de oferecer um abrigo viável. Mas os seus promotores e teóricos defendem que se trata apenas um novo estilo, com o mesmo direito de ser levado à prática de qualquer outro.» (Salingaros, 2004)


O matemático e arquitecto americano Nikos Salingaros, que já aqui apresentei há algumas semanas atrás, tem sido um estudioso e crítico desta persistente moda cultural(?) e arquitectónica, cuja forma de propagação e aceitação, pelos seus devotos e pela opinião pública, já foi comparada, inclusivamente, a um autêntico vírus mental (por favor, caro leitor, sem ironia, se se conserva são, como bem espero, é vital não se deixar "infectar" pela imagem acima, ou outras parecidas). No artigo «The Derrida Virus», que é um capítulo do seu livro «Anti-Architecture and Deconstruction», Umbau-Verlag, Solingen, Alemanha, 2004, revela-nos e explica-nos, inclusive através da análise da fonte original, a génese, as motivações e o modo de propagação deste movimento, e conclui referindo a única forma pela qual ele poderá ser travado. Transcrevo seguidamente a tradução de uma selecção de passagens desse capítulo.


«Introdução -- Desde os anos 60 que a Desconstrução tem procurado minar todas as estruturas normalmente ordenadas. "A Desconstrução é um método de análise de textos baseado na ideia de que toda a linguagem é inerentemente instável e mutável e de que é o leitor e não o autor quem principalmente determina o significado. Foi introduzido pelo filósofo Francês Jacques Derrida nos finais dos anos 60." (Encarta World English Diccionary, 1999). Isto significa que os textos não têm um significado último e que a sua interpretação cabe ao leitor. Assim, a Desconstrução pretende ser uma libertação da prevalência da certeza.


Precisa de algo possuidor de uma ordem real ou latente, para actuar e depois destruir. É, portanto, totalmente parasitária. Salvo uma notável excepção, o que os seus defensores dizem sobre ela jaz encoberto de confusão. Sendo ela um ataque à lógica, não produz declarações lógicas. De acordo com Derrida: "Todas as afirmações do tipo 'a Desconstrução é X' ou 'a Desconstrução não é X' começam por errar o alvo, ou seja, são falsas, no mínimo. Uma das coisas principais, na Desconstrução, é a sua demarcação em relação à ontologia e sobretudo à terceira pessoa do presente do indicativo: S é P." (Collins & Mayblin, 1996; p. 93).


Contudo, a Desconstrução pode ser compreendida pelo que na realidade faz. Desmantela as estruturas, as afirmações lógicas, as crenças tradicionais, as experiências observadas, etc. Quando são criticados por isso, os desconstructivistas insistem em dizer que se limitam a analisar e a comentar o texto. Esta abordagem parece-se com o modo como os vírus sobrevivem e proliferam.


O próprio Derrida chamou à Desconstrução um "vírus": i. e. um código passivo que se multiplica utilizando um hospedeiro. A sua estratégia está em conseguir ser "ingerido" por um hospedeiro confiante; forçar o mecanismo interno do hospedeiro a produzir novas cópias do vírus; e espalhar o maior número possível dessas cópias, para maximizar a possibilidade de infectar novos hospedeiros. O vírus precisa de invadir e destruir um hospedeiro mais complexo do que ele próprio, mas não pode viver por si só. Originária de França, a Desconstrução "infectou" a maior parte das disciplinas universitárias, em toda a parte. Numa declaração incaracteristicamente clara, Derrida revelou os seus objectivos: "Tudo o que fiz ... é dominado pela noção de um vírus, que poderia ser chamada uma parasitologia, uma virologia, podendo o vírus ser muitas coisas ... O vírus é em parte um parasita que destrói, que introduz desordem na comunicação. Mesmo de um ponto de vista biológico, é isto que acontece com um vírus; ele faz "descarrilar" um mecanismo de tipo comunicacional, a sua codificação e descodificação ... [ele] não está vivo nem morto ... [eis] tudo o que tenho feito desde que comecei a escrever." (Brunette & Wills, 1994; p. 12). Felizmente, como a grande maioria não consegue perceber semelhante coisa, só indirectamente foi a sociedade afectada por ela (Salingaros, 2002).»


...«A Desconstrução tem tido um sucesso notável no desmantelamento da literatura, das artes e da arquitectura. Tal como os vírus biológicos, ela é cuidadosa no equilíbrio que procura garantir entre a sobrevivência do hospedeiro e o seu grau infeccioso. Só parcialmente é o hospedeiro destruído, já que a destruição total interromperia o processo de transmissão. Ela decompõe conjuntos coerentes de ideias, dividindo os módulos naturais pré-existentes em sub-módulos. Alguns destes sub-módulos são então selectivamente destruídos para que os seus componentes possam ser depois aleatoriamente reagrupados numa síntese incoerente.»


...«A Arquitectura Desconstructivista -- ...Nos anos 80, Derrida trabalhou com Peter Eisenman num projecto para o Parc de La Villette, em Paris. Pretendia-se a criação de um pequeno jardim que incorporasse espaço des-ontologificado (seja lá isso o que for), mas que por sorte nunca foi feito. As palavras de Derrida sobre o projecto demonstram a atitude anti-arquitectónica da Desconstrução: "[É uma crítica de] tudo aquilo que subordinou a arquitectura a qualquer outra coisa -- o valor, digamos, da utilidade, ou da beleza, ou da vivência ... não para construir qualquer outra coisa que fosse inútil, feia, ou inabitável, mas para libertar a arquitectura de todas essas finalidades externas, desses objectivos alheios ... para contaminar a arquitectura ... Penso que a Desconstrução surge ... quando se desconstroi uma filosofia arquitectónica, ou pressupostos arquitectónicos -- por exemplo, a hegemonia da estética, da beleza, a hegemonia da utilidade, da funcionalidade, do viver, do habitar. Mas depois, é necessário reinscrever esses motivos na obra." (Norris, 1989).


Ora, acontece que os fins da arquitectura são precisamente o que Derrida rejeita: a estética, a beleza, a utilidade, a funcionalidade, o viver e o habitar. Estas coisas são o seu próprio fundamento, são absolutamente essenciais, e só muito improvavelmente poderão ser alheias à sua prática. A arquitectura não se submeteu nunca, na verdade, a nada mais do que isso; ela resulta e é uma expressão de necessidades humanas.


A Desconstrução aplicada a edifícios elimina as suas qualidades arquitectónicas, "reinscrevendo" uma aparência de ordem superficial e inútil, a qual aparece apenas em motivos abstractos. Mesmo o próprio Derrida reconhece que a sua noção de arquitectura não é, propriamente, arquitectura. A sua proposta é uma arquitectura da morte para o novo milénio.


Num discurso publicado pela Senhora Eisenman, diz Derrida: "Se eu fosse obrigado a parar aqui e dizer o que deveria ser a arquitectura do novo milénio, diria: no seu tipo, não deveria ser nem uma arquitectura do sujeito, nem uma do Dasein (do ser, da existência, da vida). Mas então, talvez ela tenha de desistir do seu nome arquitectura, que tem estado ligado a estas diferentes mas de algum modo, contínuas, formas de pensar. De facto, talvez ela esteja já em vias de perder o seu nome, talvez a arquitectura se esteja já a tornar alheia ao seu nome." (Derrida, 1991).»


...«Tudo dito e feito, a Desconstrução na arquitectura é uma mera continuação -- depois de uma longa pausa -- do movimento Constructivista dos anos 20, exemplificado pelo Clube Rosakov, para o Sindicato dos Trabalhadores dos Transportes de Moscovo, de Konstantin Melnikov, e pelo Monumento ao Congresso da Terceira Internacional Comunista, de Vladimir Tatlin, não construído. A vanguarda pós-revolucionária Russa casou a política radical com um estilo de arquitectura "partida". Dificilmente encontramos deslocamento geométrico intencional, na arquitectura de antes do movimento Constructivista (e do seu contemporâneo movimento Bauhaus, na Alemanha). No "A Dictionary of Architecture" (1999; pp. 162-163), James Stevens Curl define assim este movimento: "Constructivism: Movimento esquerdista anti-estético, anti-arte, supostamente pro-tecnologia, originário da USSR ... Os aspectos anti-ambientais, as formas recortadas, inclinadas ou dobradas e a expressão de elementos mecânicos presentes no Constructivismo Russo, constituíram comprovadamente fortes precedentes ... para os seguidores do Desconstuctivismo, com destaque para Hadid, Koolhaas, e Liebeskind."»


...«O vírus de Derrida infectou a arquitectura contemporânea mesmo antes da última moda desconstructivista. O seu impacte pode ser visto em edifícios "pós-modernistas" (populares entre 1965 e 1985, e portanto, contemporâneos da difusão da Desconstrução na filosofia e na literatura). Estes são marcados pela agregação de elementos arquitectónicos não cooperantes mas identificáveis. Isso é o que o vírus de Derrida faz precisamente quando actua sobre a arquitectura como um todo, em vez de desmantelar um determinado conceito num determinado edifício. Ele usa, então, um reportório aleatório de elementos tirados de diversos edifícios, estilos históricos e materiais mais antigos, e reagrupa-os de tal modo a evitar a coerência da combinação.


As reacções aos edifícios pós-modernistas, tais como a Neue Staatsgalerie, em Estugarda, não são tão alarmantes como as feitas aos desconstructivistas, porque o vírus de Derrida opera neles em menor número de escalas. O conjunto é inquietante pela forma como é arranjado (de facto, não arranjado), mas os componentes parecem não levantar objecção, e ser mesmo atractivos. Sendo os elementos menores copiados de estilos arquitectónicos genuínos, tendem a ser coerentes à sua escala menor, e interna. No caso pós-modernista, a desordem é manifestada só na escala maior, que é incoerente. No caso desconstrutivista, o vírus Derrida actua em muitas escalas diferentes, de tal forma que até a distribuição dos elementos arquitectónicos mais pequenos resulta aleatória.»


...«Muitos arquitectos tentam inovar desesperadamente, enquanto zelosamente evitam as necessidades humanas porque estas apontam para a arquitectura tradicional, pré-modernista. Arquitectura agradável e confortável, que se assemelhe a edifícios não-modernistas mais antigos, é tabu por razões ideológicas. É difamada pelo "sistema" da arquitectura. Este é o segredo inconfessado da arquitectura contemporânea: um manto de inovação questionável esconde uma doutrina de ódio pelas formas tradicionais. Infelizmente, a grande maioria do público ignora o que se passa dentro do fechado "sistema" da arquitectura.»


...«Uma vez que o vírus não está vivo (nem morto), não pode ser morto, e não faz sentido atacá-lo com os critérios do ridículo ou da lógica, tais como a verdade e a coerência. Essas técnicas servem para desmascarar e desmantelar sistemas infinitamente mais complexos, que têm uma vulnerabilidade correspondente. O vírus de Derrida é simplesmente uma peça de informação codificada nos circuitos neuronais humanos e no ambiente físico externo. Reside na mente de indivíduos doutrinados, programados para o espalhar, em edifícios e em textos que nos infectam pelos meios visuais. A única forma de o travar, portanto, é travar os seus modos de transmissão da informação.»


...«É improvável que os convertidos à Desconstrução possam ser persuadidos a abandonar o seu caminho irracional. Contudo, é provável que a sanidade e a racionalidade possam ser restauradas entre as futuras gerações de arquitectos.» Nikos Salingaros


Francisco Cabral de Moncada