quarta-feira, 20 de abril de 2011

SEM AGENDA





Da Democracia e suas Formas (Parte IV -- A democracia liberal)

Concluímos hoje a transcrição de uma parte representativa do ensaio Problemas de Filosofia Política: Estado -- Democracia -- Liberalismo -- Comunismo, Arménio Amado Editor, Coimbra, 1963, por Luís Cabral de Moncada (1888 - 1974). A Parte I -- Posição do problema; A ideia de democracia, a Parte II -- Os valores da democracia e a Parte III -- Formas da democracia, dessa transcrição, foram aqui apresentadas nas semanas passadas. O último capítulo do livro, chamado A democracia totalitária e o comunismo contemporâneo, e a Conclusão final, não serão, por agora, transcritos.

«A liberdade foi, sabe-se, a primeira grande paixão da democracia.

De condição e privilégio próprios da natureza humana, já proclamados há dois mil anos pelo Cristianismo, a democracia fez, desde os fins do século XVIII, na sua luta contra os excessos do poder real, uma bandeira e uma ideologia. Chama-se essa ideologia o Liberalismo. Esta não foi mais do que a hipostasiação e sublimação duma ideia abstracta e formal, elevada ao plano do ideal, considerada fim-de-si-mesma e convertida numa mística poderosa a que não tem faltado, muitas vezes, requebros e entonações de verdadeira mística religiosa.

Em seu nome se fizeram as duas maiores revoluções dos tempos modernos, antes da russa de 1917: a inglesa de 1688 e a francesa de 1789; como foi também no seu nome que se consumou a independência das antigas colónias inglesas da América do Norte, de 1775 a 1783. Os dois maiores teóricos destas duas últimas revoluções, LOCKE e ROUSSEAU, partiram igualmente daí. O Estado, segundo pretendia o primeiro, só servia para proteger e garantir a liberdade e propriedade dos indivíduos. Ou então, como queria o segundo: para realizar uma forma de convivência tal entre os homens, nascidos livres, que estes, abdicando apenas nas mãos de uma «vontade geral», que seria afinal sempre a sua, viessem a encontrar-se no fim tão livres como no «estado de natureza» do qual pelo «contrato social» tinham saído.

Sabe-se como esta segunda doutrina, divinizando a soberania do povo e das maiorias, portadoras dessa vontade geral, veio, mesmo já só enquanto doutrina, a precipitar-se na maior das contradições. A liberdade acabou aí por ser negada, depois de ter sido o princípio de que partia. ROUSSEAU deve, com efeito, ser considerado, conforme hoje já geralmente se reconhece, mais o pai da democracia totalitária do que da democracia liberal. E se ao que acabamos de dizer juntarmos tudo o mais que também na ordem dos factos sabemos acerca da evolução política e económica desta forma democrática, desde os meados do século XIX em diante, após o grande desenvolvimento das ciências e da técnica e dos consequentes progressos da Sociedade industrial e do supercapitalismo moderno, teremos completo o quadro dentro do qual foi possível gerar-se a primeira grave crise do Liberalismo.

O seu individualismo rácico; a sua irresistível tendência para ver no sufrágio universal a única fonte legítima do direito, bem como no poder legislativo a verdadeira essência do Estado; o seu parlamentarismo, cada dia menos à altura da crescente complexidade técnica dos problemas da administração pública, a sua fácil degeneração na luta dos partidos e na multiplicação destes, ávidos do poder e insaciáveis na persecução de fins ideológicos ou de puro interesse pessoal (sobretudo nas sociedades subdesenvolvidas com fraco nível de homogeneidade social e de cultura); e ainda, por último, a tendência desses mesmos partidos, perdida a sua primitiva pureza ideológica, para se submeterem hoje, mesmo nas sociedades mais superdesenvolvidas, como os Estados Unidos, aos chamados «grupos de pressão» económica da vida social contemporânea, são factos bem conhecidos de todos que nos dispensamos aqui de pormenorizar. São tanto de ontem como de hoje, mas são sobretudo de hoje. Com eles está feito o duro processo dessa forma do Estado na sua pureza, chamada o demoliberalismo, em todos os países que não souberam ou não quiseram ainda reformar noutros moldes a sua democracia.

Mas se, depois disto, quisessemos ter uma noção ainda mais clara da crise de que falamos, no seu ponto de partida, a fim de melhor podermos medir todo o seu alcance como que filosófico-histórico, então bastar-nos-ia olhar por um momento para o que, cerca também de meados do século XIX, se tem passado no campo económico das relações entre esta forma de Estado e a evolução do capitalismo moderno. Pode, com efeito afirmar-se que foi no justo momento em que o demoliberalismo festejava, por assim dizer, o seu maior triunfo no domínio político, na primeira metade do século XIX -- precisamente entre os anos de 30 e 50 -- que a pureza dos seus princípios logo entrou a empalidecer a olhos vistos ante o aparecimento das primeiras ideias, aspirações, e tentativas socialistas. A sua aliança com o capitalismo, tão triunfalmente celebrada pela escola de Manchester, foi que preparou a sua ruína.

A democracia liberal e o capitalismo moderno tinham nascido, como se sabe, irmãos gémeos. Eram ambos filhos dos mesmos ventos do individualismo filosófico que tinham constantemente soprado na Europa desde o Renascimento e atingiram o máximo da sua velocidade nas ideias racionalistas do séc. XVIII. Não é fácil dissociar uma da outra estas duas expressões do individualismo no campo político e no económico. Havia indiscutivelmente uma alma comum entre o individualismo económico dos fisiocratas, de ADAM SMITH e dos manchesterianos, por um lado, e as ideias filosófico-políticas de ROUSSEAU e os Enciclopedistas pelo outro. Não é pois de estranhar que as crises de um se reflectissem nas crises do outro, que elas se acompanhassem e, muitas vezes, se condicionassem. Todo o desenvolvimento histórico dos diferentes países da Europa sob o signo do crescimento da Sociedade industrial, nos dá a prova desse entrelaçamento. Bastará notar, nas suas linhas mais gerais, o sincronismo da crise nos dois domínios para vermos que foi isso que se passou.»

...«São conhecidos os excessos a que conduziu o liberalismo económico e político, justamente pelos meados do século XIX: o egoísmo desenfreado dos chefes de empresa; o seu espírito de lucro insaciável; a baixa constante dos salários a um nível incompatível com toda a dignidade da vida humana; o desemprego das multidões proletárias, com a destruição, por vingança, das máquinas da indústria algodoeira em Inglaterra; o trabalho desumano das mulheres e das crianças nas fábricas; o dia de trabalho das doze e mais horas sem limite, as regulamentações artificiais do mercado pelos trusts e grandes monopólios; a superprodução, as depressões económicas, enfim, a imensa miséria das massas operárias entre os anos 30 e 50 desse século. Tudo consequência do individualismo económico apoiado no seu poderoso aliado, o liberalismo político da democracia reinante.

Para se defender destas consequências, a democracia viu-se obrigada a procurar uma ideia nova que lhe servisse de base. Era preciso deslocar agora o acento tónico da ideia de liberdade para outro elemento. E a ideia nova para a qual ficava agora aberto o caminho, que era preciso também hipostasiar e sublimar, como antes se fizera com a de liberdade, era a de igualdade -- a outra irmã gémea da liberdade e, no dizer de HERCULANO, afinal a mais forte paixão da democracia. Mas agora uma igualdade, não de pura teoria, mas de verdade.

Por outros termos: a liberdade, por virtude dos seus próprios excessos na aliança com o supercapitalismo, gerava ao fim e ao cabo, como diria HEGEL, o seu contrário, alguma coisa que iria voltar-se contra ela e negá-la. Aquilo que se dera já com ROUSSEAU no puro campo doutrinário, dava-se também agora no dos factos: uma contradição imanente num processo dialéctico. A ideia de igualdade não tardou, com efeito, em invadir, desde então, a esfera política e a impor também aí à liberdade, pouco a pouco, no decorrer da segunda metade do século, uma vasta série de compromissos numa complexa teoria de limitações, negações e vexames. Muito antes do comunismo, já conhecíamos essa teoria de compromissos e esse complexo de limitações para os quais foram sendo criados, sucessivamente, os mais diversos nomes. Estado e direito sociais; democracia e socialismo cristãos; Estados corporativos das doutrinas krausistas e das Encíclicas de Roma; socialismos reformistas e catedráticos de todas as cores; Estados fascistas e orgânico-integralistas; New Deal americano e os «terceiros caminhos» do Neoliberalismo contemporâneo (RÖPKE e LIPPMAN), etc. Não estarão aí outros tantos marcos e pontos de referência do velho liberalismo político, aliado ao liberalismo económico, no caminho da sua auto-destruição? Alguém duvidará de que esta auto-destruição -- mesmo se aceitarmos as ideias dum SCHUMPETER, dum capitalismo que como a Fénix só morre para renascer -- é um facto indubitável, origem de todas as crises da democracia liberal de há um século a esta parte?»

Dito por outros termos ainda: era necessário agora, desde o começo da crise, dar cada vez mais a palavra à igualdade na construção e reforma da democracia. Sabe-se, porém, como as grandes ideias sociais são eminentemente expansivas e imperialistas. Afirmadas a princípio com um objectivo limitado, não tardam em propagar-se para além do campo a que foram chamadas.»...«Já acontecera isso com a liberdade. Esta, proclamada primeiro só pela burguesia, na Revolução francesa, no interesse do tiers-état, não tardou em aproveitar também ao quarto estado, à arraia-miúda, e a todos os homens. E coisa parecida ocorria agora com a igualdade. (1)

Proclamada também, em primeiro lugar, no campo económico pelo Socialismo, insatisfeito com os irrelevantes triunfos teóricos já por ela alcançados no campo jurídico e político por obra daquela revolução, ela não tardaria em se propagar mais tarde, gradualmente, a todas as outras esferas da vida social, incluindo a da cultura e do espírito, como os círculos produzidos pela queda duma pedra na superfície dum lago. Simplesmente: há aqui uma importante diferença a registar na forma de propagação das duas ideias. Enquanto que a liberdade é, por assim dizer, planta agreste que, uma vez caídos os seus germens na terra, facilmente se desenvolve e cresce por si, a igualdade é planta de estufa que requer condições particularíssimas para medrar. São-lhe necessárias certa temperatura e certo estado de pressão do vapor de água. Carece de muitos órgãos de administração e de governo, de muitas leis com abundante regulamentação, e inclusive de uma determinada concepção do homem e da sociedade, totalmente diferentes das do individualismo liberal. Requer planificação, planeamento, organização constritiva, estatismo dirigista -- numa palavra: força. Se não for assim, a igualdade corre sempre o risco de se ver a cada passo asfixiada pela liberdade como o trigo pelo joio. E daí precisamente a progressiva e lenta invasão pelo Estado de todas as esferas da actividade social a que estamos assistindo e que até os neoliberais, embora com certo ar pesaroso e contrito, já sem dificuldade aceitam. Como daí ainda toda essa série de versões e tentativas de reforma do Estado demoliberal, a que já aludimos, e a que poderíamos chamar o Estado social forte e autoritário dos nossos dias: o novo Leviathan nascido da crise dessa primeira forma de democracia, já na antecâmara das ideias socialistas.»

Nisto veio afinal a dar a democracia liberal dos séculos XIX e XX antes da primeira guerra mundial: no vivo conflito também na ordem dos factos, já produzido na esfera especulativa com ROUSSEAU, entre as ideias de liberdade e igualdade, gerado e constantemente agravado através dum processo dialéctico de contradições inamovíveis. A democracia liberal»...«não pôde mais, a partir de certo momento, limitar-se à contemplação extática das suas concepções éticas, jurídicas e políticas. Teve de render-se às exigências do factor económico, enfraquecendo progressivamente a sua comprometedora aliança com o capitalismo e procurando reformar-se a si mesma, no sentido de ideias cada vez mais sociais em contradição com os princípios de que partira. Está aí bem patente o ponto mais alto da crise, nas últimas transformações mais ou menos de todas as grandes democracias ocidentais. Tudo o mais é secundário. As insuficiências do parlamentarismo perante a crescente tecnificação dos mais graves problemas da administração, o enfraquecimento das ideologias, com excepção da comunista, em benefício da exclusiva preocupação com o bem-estar material, e o próprio alheamento da opinião pública em face das questões puramente políticas, não são senão o efeito e a manifestação da crise. Dir-se-ia que esta forma de democracia, tendo começado por ser a mais fiel expressão política do capitalismo e do supercapitalismo nacionais, se viu pouco a pouco forçada a voltar-se mais tarde contra eles, quando não a repudiá-los, para poder sobreviver-lhes. Hoje estamos ainda assistindo, em muitos países, ao prolongado arrastamento dessa sobrevivência.

E mais: -- se isto é como acabamos de dizer na ordem interna da vida dos povos europeus, na externa das relações entre eles é preciso não deixar de notar ainda e de meter à conta dessa mesma democracia liberal -- isto é, no seu passivo -- por último, as duas guerras mundiais deste século. Não só, com efeito, a democracia liberal, não obstante toda a sua evolução para novas formas sociais, as não pode evitar, como, pela sua aliança com o capitalismo, o imperialismo e o colonialismo internacionais, foi ela ainda que preparou o terreno em que eclodiu a primeira -- e, pode dizer-se, também a segunda pelo exacerbamento até à loucura do nacionalismo dos povos vencidos e espoliados pelos vencedores. HITLER e o Terceiro Reich outra coisa não foram, segundo nós, senão consequência necessária da capitalista e demoliberalíssima Paz de Versailles de 1919.

No processo que fica descrito desta evolução económico-política não se ficou porém, por aqui. As ideias sociais, como já se disse, têm o poder interno de expansão e tornam-se também facilmente imperialistas. Aquilo que se seguiu à lenta liquidação do liberalismo doutrinário e da democracia liberal pura, na sua transição para a democracia igualitária, social e autoritária, primeiro, e depois para a totalitária dos nossos dias, foi ainda a conclusão lógica do mesmo processo em dois tempos na história da Revolução industrial de que falava TOQUEVILLE.

No primeiro destes dois tempos tinha-se ainda chegado a um compromisso de relativo equilíbrio entre liberdade e igualdade. PROUDHON (1808 - 1865) na sua síntese libertária de liberalismo e colectivismo, fora o profeta dessa nova harmonia social de que o futuro príncipe-presidente, o san-simoneano NAPOLEÃO BONAPARTE, com a sua Extinction du paupérisme de 1845, fora talvez o vate romântico. O predomínio, nesta síntese, era já da última, sem dúvida, mas nela a voz da primeira, a da liberdade, fazia-se ainda ouvir.

Na linha desta evolução, com o triunfo da ideia de igualdade económica em plena expansão, era, porém, natural, que chegasse um momento em que o desajustamento entre as formas políticas da velha sociedade e as novas estruturas económicas, de inspiração cada vez mais socialista, que se fora agravando durante a segunda metade do século XIX, não permitisse mais compromissos entre elas. E esse momento chegou com o fim da primeira guerra mundial. Foi a Revolução russa de 1917 com a vitória do Comunismo soviético e a sua nova forma de democracia: a democracia popular, totalitária ou de massas. Estes os factos.»

(1) Importa aqui notar as duas maneiras totalmente diferentes como sempre se tem entendido esta igualdade de que falamos: ou como igualdade moral ou como igualdade matemática abstracta dos homens como indivíduos da espécie humana. A primeira foi a igualdade, já entrevista pelo estóico, dos homens como seres racionais, e, mais tarde, proclamada pelo Cristianismo em termos da mais ampla espiritualidade: os homens como filhos de Deus. É a igualdade que consiste na igual dignidade da pessoa humana, imagem da própria Divindade, e portadora por isso dum destino eterno. A segunda é a igualdade das concepções atomísticas e individualistas, próprias da Filosofia-moderna, levadas ao máximo da sua aplicação ao mundo moral e social pelos racionalistas do século XVIII: a igualdade dos conceitos, dos números e dos objectos matemáticos.

Infelizmente, foi esta segunda compreensão da igualdade a que, como se sabe, veio a prevalecer nos sistemas e construções sociais, políticos e económicos do século XIX, derivados da Revolução Francesa: a democracia liberal e o socialismo científico. NIETZCSHE via a origem psicológica ou psicanalítica destes dois movimentos na inveja e no ressentimento das massas. Esta distinção fundamental escapa, muitas vezes, aos inimigos irreconciliáveis de toda a ideia democrática, por suporem que a igualdade que esta reclama é necessariamente uma igualdade da segunda espécie -- o que não é de modo algum verdadeiro.
L. Cabral de Moncada

Francisco Cabral de Moncada