quarta-feira, 30 de março de 2011

SEM AGENDA

Da Democracia e suas Formas (Parte I -- Posição do problema; A ideia de democracia)

Sendo a questão da democracia política uma daquelas questões sempre presentes na nossa vida, e sempre mais ou menos na ordem do dia -- vivemos, há séculos, e hoje, mais do que nunca, quer o queiramos quer não, mergulhados em democracia, ou numa sua imagem -- proponho aqui, a todos os que ainda o não fizeram, um esforço para a contemplar à distância: o de sairmos, por um momento, ao menos, desse mar que nos banha, sentarmo-nos na duna, e daí, ou de outros pontos panorâmicos à nossa escolha, tentarmos compreender um pouco melhor esse mar misterioso, alteroso e imenso. Se o conseguirmos, poderemos depois talvez escolher, com maior liberdade -- em intenção, pelo menos -- ou voltar para ele, para o abraçar em vigorosas braçadas, ou molhar só as pernas (se a maré não puxar), ou ainda, se assim preferirmos, nos deixarem, e porventura isso for viável, na prática (coisa de que, ao fim e ao cabo, muito duvido), ficar pela duna. Proponho-vos hoje, com continuação nas duas ou três semanas seguintes, se Deus quiser, uma visita a um desses pontos panorâmicos, que circunstância familiar me deu a conhecer, sem qualquer merecimento da minha parte: o pequeno ensaio do meu Avô paterno, L. Cabral de Moncada, chamado Problemas de Filosofia Política: Estado -- Democracia -- Liberalismo -- Comunismo, Arménio Amado Editor, Coimbra, 1963, que suponho de difícil acesso, hoje em dia (reúne os dois trabalhos Do conceito e essência do político e Democracia, ambos publicados no Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, volumes XXXVII e XXXVIII, de 1961-1962). O que se segue é uma selecção que fiz, imperfeita embora, de um conjunto de passagens que me pareceram, de certa forma, representativas da intenção do autor.

«Um dos erros que mais tem contribuído para a incorrecta compreensão do problema da democracia, está na confusão em que frequentemente se cai entre três coisas, segundo nós completamente distintas: a própria ideia de democracia, o seu significado axiológico, e o acidental das suas formas e realizações históricas.»...«Uma coisa, com efeito, é democracia, outra, democracias. Mais rigorosamente: uma coisa é a ideia e a essência da democracia; outra, os valores humanos que com essa ideia se pretendem servir; outra ainda, as diversas concretizações e formas de realização que de tal ideia e tais valores, historicamente, tem sido avançadas, ou simplesmente tentadas, através das diferentes estruturas ou tipos de Estado tidos em todos os tempos como mais ou menos democráticos. Se a primeira destas três coisas corresponde a um problema de ordem exclusivamente gnoseológica, não necessariamente filosófico desde logo, a segunda conduz-nos a um problema directamente filosófico, de filosofia dos valores e da cultura; enquanto que a terceira nos coloca de preferência ante um problema, por assim dizer, só de política. Por política entendemos aqui, antes de mais nada, técnica, técnica de organização sobretudo jurídica do Estado: escolha dos meios mais apropriados às várias condições de ambiência social, económica, social e histórica, para a efectivação da democracia e dos seus fins. E é evidente que se nos dois primeiros problemas podemos ainda admitir - se não formos totalmente cépticos - que o nosso espírito vá em busca de algo absoluto, no terceiro jamais ele poderá ultrapassar o domínio da mais fatal e invencível relatividade de todas as coisas humanas.»

...«A ideia de democracia não é uma ideia à priori.»...«Formamo-la em nós, no nosso espírito, é certo, mas a partir de determinados factos e dados de que temos uma experiência. É uma ideia geral, um conceito, que extraímos desses factos e dados. E esses são factos e dados históricos, ou melhor, da história da cultura. A democracia é, antes de mais nada, um facto cultural. Com efeito, olhando para aí, para esse campo de fenómenos, logo verificamos que aquilo a que damos esse nome nunca outra coisa foi senão uma certa forma de Estado, e portanto de estruturação do «político», com determinadas características que a permitem distinguir de outras, antes de qualquer juízo de valor da nossa parte acerca dela. A pergunta então a fazer é: quais essas características? Em que se conhece que um Estado é democrático?

Já os gregos no-lo diziam quando contrapunham a democracia à aristocracia e à monarquia. Eram estas as três formas fundamentais de Estado que eles conheciam. E distinguiam-nas, conforme não é menos sabido, consoante o poder político, ou aquilo a que nós hoje chamamos soberania, essencialmente, residia: ou na generalidade dos cidadãos, ou só numa classe destes, tida como a dos melhores (άριστοι) ou ainda num só de entre eles. Não faltavam já na antiguidade exemplos de tudo isso. Esta classificação das formas do Estado remonta ainda a antes de ARISTÓTELES, mas foi sobretudo este que na sua Política no-la transmitiu com mais rigor descritivo e crítico, tendo-se mantido através dos séculos, sem que outra melhor até hoje a tivesse vindo substituir. E o mesmo pode ser dito das também bem conhecidas formas degenerativas ou doenças que acompanharam sempre de perto aquelas três formas de Estado e se chamam, respectivamente, a demagogia, a oligarquia e a tirania

...«Qualquer que tenha sido o valor atribuído pelo Estarigita a estas três formas de Estado num critério de preferência, questão que para o nosso ponto de vista é aqui indiferente, o inegável é que ele as tomou sempre como base, como arquétipos ideais na sua pureza, ao descrever-nos a organização das repúblicas antigas, mesmo quando teve de verificar que as realidades do seu tempo já não lhes correspondiam. Não devemos confundir os dois pontos de vista.»

...«Deve notar-se que na base desta divisão tripartida está em ARISTÓTELES sempre o critério, não da origem ou legitimidade do poder, coisa que não o preocupou, mas o da entidade que de facto, o detém. Trata-se dum critério de como as coisas são e se apresentam, e não de como elas devem ser. Quanto à legitimidade, esta, que se pode dar em todas, afere-se apenas, segundo em ARISTÓTELES se depreende, pela sua capacidade de realizar o bem e a utilidade de todos, tanto da cidade como dos cidadãos. Além disso, deve também notar-se que a monarquia aparece, as mais das vezes, designada em ARISTÓTELES por basileia (βασιλεία) que quer dizer reino. Também para ele aquilo que nós entendemos por democracia é antes designado por πολιτεία, reservando a palavra democracia para aquilo que nós apelidamos demagogia como forma corrupta ou degenerada da primeira.»

...«Por último, uma outra consideração se impõe ainda aqui fazer, embora com um carácter nimiamente hipotético. Queremos referir-nos à diferença de significação semântica dos dois étimos que como sufixos ARISTÓTELES utiliza para distinguir o governo de um, do governo de poucos, e do de todos os cidadãos ou da demos: arquía e kratia. Assim, enquanto que para a primeira forma de Estado (a monarquia) utiliza o sufixo αρχία (do verbo αρχώ que significa, antes de tudo, ir ou estar à frente, ser o primeiro), utiliza para a terceira, bem como para aristocracia o sufixo ϰρατία (do verbo ϰρατέω) que, derivado de ϰράτος (força), significa mais propriamente dominar, exercer o poder pela força, etc. Esta circunstância, se admitirmos tão rigorosa diferença de significações entre os dois étimos, talvez possa concorrer para nos convencer de que, enquanto a democracia é uma verdadeira forma de Estado, a monarquia não passaria, porventura já para ARISTÓTELES, de uma simples forma de governo: aquela em que um só, o rei, o basileus, se encontra à frente do governo da cidade, sem se dizer donde ele tira o poder e se o detém como próprio ou como derivado. Esta interpretação é ajudada ainda pelo facto de todas as palavras da origem grega, que conhecemos, em que entra o mesmo étimo άρχή como prefixo, terem idêntico significado; por ex. archonte, arcebispo, arquimandrita, arquétipo, etc. A palavra que significaria melhor a ideia do poder radicado nas mãos de um só homem seria , pois, a de monocracia, μονοϰρτία, em vez de μοναρχία, que aliás, deve dizer-se, o Estarigita na sua Política não emprega.

E, assim, em resumo, na democracia, segundo nós, o poder estaria, por direito próprio, nas mãos da generalidade dos cidadãos (penes populum); na oligarquia seria apenas exercido por poucos à frente do Estado; na aristocracia estaria radicado, também por direito próprio nas mãos dos melhores, só por serem os melhores e os mais justos; na monarquia seria exercido também por um à frente do Estado; e finalmente, na monocracia, paralelamente à democracia, o poder estaria radicado também nas mãos de um só, mas agora por direito próprio. Exemplos deste último caso, porém, só os conhecemos nas antigas monarquias orientais e nas nossas monarquias absolutas de direito divino da Idade Moderna, derivadas estas últimas da concepção hebraica do poder real como carisma, que tanta influência exerceu sobre as ideias monárquicas da civilização europeia. Na linguagem de ARISTÓTELES cremos que estas últimas só poderiam classificar-se como forma corrupta da monarquia, ou seja, como tirania. Não entram, porém, nesta categoria as antigas monarquias limitadas da nossa Idade Média, nem as constitucionais parlamentares do século XIX, em que o poder do rei não era considerado autónomo, de origem transcendente, mas derivado da comunidade. Nelas a democracia facilmente se combinava, já com as velhas estruturas corporativas e feudais (rex eris si recte facies), já com as ideias do liberalismo derivado da Revolução Francesa (soberania nacional). É por isso que dizemos ser a monarquia, não a monocracia, uma simples forma de governo e não uma forma de Estado

...«E assim, encurtando razões, podemos também nós dizer com os gregos, muito simplesmente, que a democracia nada mais é senão precisamente aquela forma de Estado em que de qualquer maneira o povo, isto é, a generalidade dos cidadãos, é o detentor do poder. Por outros termos: aquela forma de Estado em que, de qualquer maneira, tiver lugar uma intervenção ou participação do povo, por direito próprio, no governo da cidade...«Por «direito próprio» queremos entender neste caso um direito que não pode ter outro suporte -- digamos assim -- senão o povo ou a generalidade dos cidadãos.»...«Esta doutrina tem em teoria política o nome bem conhecido de doutrina da soberania popular, fonte de inúmeros equívocos e controvérsias. Antes de ser um dogma ou um mito ideológico, foi um facto, ou uma conquista de facto, nas histórias das democracias na sua luta contra outras formas de Estado, nomeadamente, a monocrática

«Mas tendo as coisas esta simplicidade, como acabamos de ver -- reduzida a ideia de democracia a este núcleo simples e fundamental, sem nos importarmos com as mil formas históricas que ela tem revestido, nem com os múltiplos elementos de ordem institucional e ideológica que sempre a têm acompanhado -- imediatamente teremos de reconhecer não fazer sentido algum falar a seu respeito de crise. Parece-nos isto por demais evidente. Valiosa ou desvaliosa, verdade ou erro, encontramo-nos aí diante de uma ideia ou representação mental extraída da observação de inúmeros factos históricos, relativa a determinada forma de organização das sociedades, e nada mais. Poderia indiscutivelmente dizer-se outro tanto da monarquia ou da aristocracia como puras ideias, se nos ocupássemos delas.»...«A ideia de democracia é tão susceptível de crises como a de monarquia ou aristocracia, como a de capitalismo ou comunismo, como a de vertebrado ou mamífero. As crises, sabe-se, são só dos homens no seu particular modo de quererem e tentarem realizar as ideias.» ...«No «céu inalterável da ideia», aí onde, como diria o poeta, a razão é a «irmã do amor e da justiça», não há crises. As coisas, os objectos e pensamentos, e assim também as estruturas da organização política das colmeias humanas são o que são. Podem umas ser mais valiosas que outras, segundo o critério das nossas preferências doutrinais e ideológicas. Isto será, porém, outra ordem de ideias. Tais simpatias ou antipatias serão sempre indiferentes no ponto de vista, axiologicamente neutro, da realidade e do pensamento que o exprime.

Eis tudo o que nos parece lícito dizer acerca da democracia se apenas, já histórico-empiricamente, já fenomenologicamente, a encararmos no primeiro dos três aspectos que acima descriminamos. Depois disto, querer ainda afirmar seja o que for sobre o modo como o povo deve intervir na governação do Estado -- se directa, se representativamente, se mediante sufrágio universal ou restrito, se por meio de sufrágio de base individualista ou orgânico-corporativa, se através de outras organizações infraestatais ou inclusive de partidos únicos, massas sublevadas, hipnotizadas ou sonâmbulas -- já não pertence a esta parte do tema. Como tão pouco pertencerá aqui a discussão sobre a propriedade e conveniência dos melhores meios técnicos e técnico-jurídicos para a democracia se organizar, tais como poderão ser, por exemplo, o regime parlamentar ou constitucional, a república ou a monarquia, os diferentes sistemas eleitorais, a competência deliberativa ou apenas consultiva das assembleias populares, etc. Incluir aí essas questões seria praticar uma deplorável ignoratio elenchi. Tais problemas, que neste estudo não chegaremos a tratar, só podem ter o seu lugar na última parte, na chamada política da democracia.» L. Cabral de Moncada

Francisco Cabral de Moncada