quarta-feira, 16 de março de 2011

SEM AGENDA





O Urbanismo Modernista e o Novo Urbanismo (Parte II)
Com as duas imagens acima apresentadas procuro não só reflectir o título deste texto, mas também ilustrar, de forma suficientemente exemplar, a dupla faceta verificada na prática urbanística actual nos Estados Unidos da América - o chamado suburban sprawl, por um lado, e o mais recente New Urbanism, por outro. Em parte, certamente, por herança do génio britânico, muito marcado por um tipo de sensibilidade individual bem característico, tanto aqui como nos países cultural e etnicamente mais ligados ao antigo Império - o Canadá, a Austrália, a África do Sul, etc. - o tipo de crescimento urbano dominante ao longo de todo o século XX seguiu, com alegada intenção ou como intuitiva tendência, o arquétipo nascido com o Garden City Movement, introduzido nos fins do século precedente em Inglaterra pelo militante e teórico social Ebenezer Howard (1850-1928) e pelas realizações de projectistas de inegável talento - Letchworth Garden City, 1903 e Hampstead Garden Suburb, 1907, por B. Parker e R. Unwin; Welwyn Garden City, 1907, por L.de Soissons, etc. Este movimento surgiu como uma tentativa para resolver a dicotomia entre a malha urbana da cidade industrial oitocentista, problemática em vários graves aspectos, e o espaço natural, percebido como ideal da felicidade humana. Howard tinha vivido cinco anos na América dos anos 70, onde recebeu as influências de W. Whitman, R. Emerson e das teorias das origens do Belo na natureza.
As baixas densidades, com a habitação sobretudo disposta em casas isoladas ou em banda (o britânico típico sempre desprezou os flats), desejavelmente com amplas e multiplas áreas verdes, públicas ou privadas, e o zoning, separando a indústria da habitação, deu forma a este novo modelo híbrido (cidade mais campo num só) nascido nas Ilhas mas com mais ou menos influência por toda a Europa, sobretudo em países anglo-saxónicos como a Alemanha a Bélgica e os Países Baixos, diferentemente do outro novo modelo, de raiz cultural mais latina, se assim se pode dizer, que veio a ser maioritariamente praticado na Europa do pós-II Grande Guerra, com zoning também, e bem radical, mas mais característico do texto e do espírito da Carta de Atenas (veja-se a Parte I deste texto), com maior concentração constructiva localizada, quer em grupos de arranha-céus idealmente implantados no interior de amplas áreas ajardinadas (em Portugal temos, como exemplo, o Bairro dos Olivais) quer em bandas de habitação colectiva extensiva de poucos andares, e frequentemente sem hierarquia de fachadas (quando toda a superfície é fachada, mormente nos arranha-céus elevados em pilares, com entrada ao nível térreo por baixo do edifício). Ao passo que na Garden City os arruamentos que servem as habitações perdem o rico significado que possuía a típica rua urbana tradicional, normalmente sempre também com algum comércio e mais outros usos, no outro modelo referido, que eu designaria "à Le Corbusier", todos os arruamentos são dispositivos meramente mecânicos, podendo quando há espaço suficiente tomar no terreno as formas mais livres, para veículos ou como caminhos pedonais independentes, completamente alheios, em todo o caso, à própria ideia convencional de rua.
Nos Estados Unidos, o paisagista e urbanista Clerence Stein (1882-1975) aplicou as teorias da Cidade-Jardim a dois projectos urbanos com jardins comunais e separação entre trânsito automóvel e peões: Sunnyside Gardens, New York, 1924; e Redburn, New Jersey, 1929. Stein era sócio do polémico autor de temas urbanos Lewis Mumford (1895-1990), discípulo de Ebenezer Howard e do biólogo Patrick Geddes, que defendia uma posição humanista muito crítica da dependência moderna da tecnologia.
Mas já a partir dos anos 20, na América, a Garden City ou os Garden Suburbs, que eram extensões periféricas com bastante limitada ou nenhuma autonomia, mas em todo o caso viáveis por estarem ligadas ao centro da grande cidade pelo caminho de ferro, começaram rapidamente a dar primazia a um novo fenómeno tipicamente americano, tanto na sua génese como nas espantosas proporções depois e até hoje alcançadas - o suburban sprawl, tornado possível com a massificação do carro privado e a introdução da auto-estrada, e socialmente vocacionado, sobretudo, para as numerosas famílias de raça branca da pequena burguesia, levadas a sair da cidade não só atrás do ideal de uma nova vida no "campo", mas sobretudo até por razões económicas. Então depois da última guerra, o fenómeno tornou-se imparável e é hoje omnipresente no quotidiano da vida americana. Com ele, as generosas áreas verdes e outras apreciáveis qualidades da cidade-jardim desapareceram e os resultados da obcecação por uma estreita optimização comercial e funcional, assim como a sua completa subordinação ao zoning e à utilização a larga escala do automóvel para todas as mais insignificantes necessidades correntes, com sacrifício adicional para todos os residentes que não guiam, mostram hoje à evidência a insustentabilidade a prazo do modelo de desenvolvimento implícito e o estado de extrema disfunção da vida quotidiana por este ocasionado em tempos de crise económica e de aumento do preço dos combustíveis, como agora mesmo acontece, com muitos milhões de pessoas a ficarem, literalmente, abandonados nos subúrbios.
O New Urbanism apareceu no início dos anos 80 com a intenção de poder vir a constituir uma alternativa urbanística, radical mas viável, a este estado de coisas. Embora existisse já parcialmente em potência, sem esse nome ainda, numa tradição adormecida mas nunca extinta, que veio a integrar a seu favor os contributos teóricos inovadores da escritora Jane Jacobs, com o seu clássico livro The Live and Death of Great American Cities, 1961, e do matemático e arquitecto Cristopher Alexander, com o artigo A City is not a Tree, 1965 e o livro A Pattern Language, 1977, o New Urbanism veio a ter a sua primeira concretização prática na iniciativa do arquitecto de Miami Andrés Douany e sua mulher Elisabeth Plater-Zyberk, convertidos pela influência pessoal de Léon Krier, que naquela altura passava uma temporada nos EUA, às ideias e princípios urbanísticos de matriz tradicional por este defendidos.
A nova vila balnear de Seaside, na Flórida, começada em 1984, constituiu a primeira realização exemplar destes princípios, adaptados às condições e à tradição arquitectónica regional, e um verdadeiro balão de ensaio do movimento, tendo Léon Krier aí construído, de princípio a fim, a sua própria casa. Em resumo, pretendia-se obter a criação de uma comunidade onde todas as necessidades urbanas mais correntes - o comércio local e os serviços e equipamentos básicos, como a escola primária, os correios, a capela, as actividades balneares e de lazer, etc., fossem todas facilmente acessíveis à distancia de cerca de 5 minutos a pé, através de uma malha urbana de ruas e de outros espaços públicos interligados, claramente reconhecíveis e hierarquizados, com centro, áreas periféricas e limites naturais bem definidos e com prioridade do peão ou da bicicleta em relação ao automóvel. Tudo isto usando o parcelamento, as tipologias dos espaços públicos e das construções e um vocabulário arquitectónico que permitisse alcançar os seguintes resultados: variedade sócio-económica e etária da população, por um lado; unidade com variedade justificada, de cada um e do conjunto dos espaços públicos e da arquitectura, por outro.
Os resultados alcançados em Seaside e, não muito depois, também noutros pontos, ao longo de processos construtivos com suficiente lentidão, para que assim melhor pudessem ser incorporados os próprios feed-backs alcançados, foram muito animadores. Esse sucesso encorajou a rápida expansão do movimento, tanto por Duany como por outros e cada vez mais urbanistas, arquitectos, utentes, empresários e até políticos, em muitas partes do país. Em 1993 era fundado o CNU - Congress for the New Urbanism, com a sua Carta de princípios e intenções em que se adivinha o ambicioso projecto de mudar em algumas décadas a face da América. A missão revelada inclui ...«a reestruturação da política pública e de práticas urbanísticas que dêem suporte à regeneração de centros urbanos e de cidades existentes, integradas no interior de regiões metropolitanas coerentes. Defendemos a reconfiguração de expansões suburbanas em comunidades de vizinhança com os seus diferentes bairros, a conservação dos ambientes naturais e a preservação do património construído....A reconstrução das vizinhanças, das cidades e das regiões é profundamente interdisciplinar. Acreditamos que as comunidades, a economia, o ambiente e o desenho projectual têm de ser abordados simultaneamente através do projecto urbano e do planeamento.»
A maior limitação a uma mais rápida expansão deste movimento continua até hoje a ser a rigidez das leis e das normas urbanísticas, profundamente alteradas após a II Grande Guerra por forma a consagrar generalizadamente o zoning, as quais, enquanto não forem alteradas, continuam a ser radicalmente hostis ao tipo de experiência urbana tradicional característica do New Urbanism. Para tentar ladear este problema, Duany e a sua equipa criaram o chamado SmartCode, o qual inclui um tipo de zoning ditado pelo afastamento sucessivo e gradual das várias regiões urbanas desde o centro de uma metrópole até ao seu espaço exterior rural, perfeitamente compatível com a variação das densidades e do carácter urbano historicamente observáveis em todas as zonas urbanas tradicionais, e tem-se procurado, caso a caso e com crescente sucesso, negociar este tipo de códigos, adaptados a cada região e local em concreto, com as autoridades licenciadoras.
Hoje, são já largas centenas as realizações acabadas ou em construção, também designadas por TND - Traditional Neighborhood Developments. O movimento tem feito o seu caminho, não só na América como pela sua influência levada a outras partes do mundo. No próximo texto falarei da situação actual do novo urbanismo de inspiração tradicional na Europa.
Francisco Cabral de Moncada