quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

SEM AGENDA


Léon Krier e a Modernidade da Arquitectura Tradicional (Parte II)
Concluo hoje a reprodução de um artigo que escrevi em 2004 para o Boletim e o sítio electrónico do grupo universitário Arautos d’El-Rei, de Coimbra, e nesse ano também publicado no jornal O Dia, a propósito da edição portuguesa do livro maior do arquitecto luxemburguês Léon Krier (1). A Parte I do artigo foi publicada neste espaço a semana passada.

Elevada atenção é dedicada à definição do objecto arquitectónico e à clarificação de conceitos (modernidade, modernismo, tradição, tipo, composição, invenção, inovação, construção vernacular, arquitectura clássica, estilo,...), a começar pela importante distinção entre culturas tradicionais (artesanais, tendo por objectivo a produção de objectos de uso a longo prazo) e modernistas (industriais, tendendo a produzir objectos de consumo a curto prazo).

Krier relembra a diferença fundamental estabelecida por toda a arquitectura tradicional entre os edifícios públicos e sagrados - a ‘Res Publica’ - e os utilitários e privados - a ‘Res Privata’ - sendo a verdadeira cidade, com os seus monumentos criteriosamente inseridos na malha urbana geral, uma combinação das duas. Aponta o arranha-céus e o “arranha-terra” utilitários, bem como alguns pretensiosos complexos habitacionais ou de negócios, como monumentos fictícios, pois proeminência ou vastidão não são garantia, e monotonia e estatuto funcional são inadequados, à criação de significado monumental. (a propósito da liquidação de significados, terá sido uma simples distracção o recente “passo ao lado” a cavalo, de D. João I, para o remate de um eixo iluminista? ; e que pensar do tratamento dado a D. João V, em Mafra? - a lista poderia continuar...).

Quanto ao objecto arquitectónico (a cidade, a rua, a praça, o templo, a igreja, o campanário, a casa, o palácio, a fábrica, a cabine telefónica, o átrio, a abóbada, a coluna, a arquitrave, a porta, a janela,...), invenção humana de uma gama necessariamente limitada, ele é sempre denominável por uma convenção duradoura e de valor constante pela qual a sua aparência e função estabelecem ...«uma relação de verdade evidente» (união entre símbolo e significado, forma e conteúdo, tipo e função, estilo e estatuto). É também notado que a maior parte das inovações arquitectónicas do século XX são ...«transferências de ideias pertencentes a outras categorias» (edifícios que emitam a aparência do paquete, do comboio, da refinaria, do contentor,...) bem como a ...«mistura de géneros» (a “cidade-jardim” não é cidade nem jardim; a “sala polivalente” não substitui convincentemente a igreja, o teatro, o ginásio; assim também o “parque de negócios”, a “máquina de habitar”, o “espaço verde”, o “mur-rideau”,...). Não têm a capacidade de ...«substituir nem o vocabulário, nem a tecnologia nem a natureza própria do objecto arquitectónico». ...«Erros de escala, de proporção e medida, de forma, conteúdo, estilo, tipo e carácter são sempre desqualificados publicamente através do uso espontâneo de “alcunhas” pertinentes» ( “refinaria de petróleo” para o centro Beaubourg de Paris, “o radiador” para a sede da ONU, ou, lembro agora, “o palácio de Ceausescu” para a sede da CGD em Lisboa ou “o King Kong” para a negra torre de escritórios na baixa de Coimbra) apenas reveladoras de poder de imaginação e capacidade de discernimento.

Por outro lado, a substituição generalizada de paredes mestras por estruturas sustentadoras separadas dos paramentos exteriores, e a dos materiais naturais pelos artificiais, tem propiciado o aparecimento de uma imensa vaga ‘kitsch’, pós-modernista ou tradicionalista, caricatura de uma autêntica cultura tradicional e reveladora de uma ...«ruptura ontológica ente o ser e o parecer» ao nível da relação entre tecnologia e expressão arquitectónica. Pela dimensão deste fenómeno, Krier considera-o mesmo o maior antagonismo hoje existente no seio da arquitectura.

Uma extensa parte do livro é totalmente dedicada aos problemas do urbanismo, com larga explanação das teses do autor, as quais integram hoje as recomendações europeias.
Começa por identificar a causa da maioria dos problemas: a sobreexpansão monofuncional, vertical no centro das cidades e horizontal nas periferias, condicionando-se reciprocamente. O ‘zoning’ monofuncional (residencial, escolar, comercial, industrial, administrativo), propagado pela Carta de Atenas de 1931, é tido como o mais grave produto ideológico do urbanismo modernista e essencialmente uma técnica de desenvolvimento industrial causadora da …«fragmentação anti-urbana e anti-ecológica dos aglomerados integrados e multifuncionais».
Para futuro explica como, atendendo à escala nacional e continental a que se decidem hoje os grandes imperativos de transformação, se apresenta a necessidade de ligar crítica ecológica e projecto de cidade num contexto continental de longo prazo, em complemento à constituição política das nações.

Léon Krier diz-nos que as potencialidades da arquitectura tradicional continuam intactas, referindo que existem técnicas artesanais para construir rapidamente e mostrando como o rendimento global de um edifício, em termos de eficácia construtiva, económica e ecológica, tem de ser calculado tendo em vista o ciclo de vida do edifício, os tempos e custos de manutenção e a relação ecológica do edifício com o contexto. Sendo hoje a questão que se coloca a recuperação da sua qualidade, muito degradada pela industrialização da construção, que destruiu o artesanato tradicional e o seu ensino, fica evidente a necessidade da restauração do ensino de um artesanato moderno.

Nada é irreversível. O nosso futuro dependerá sempre, em última análise e no que for dado decidir aos homens, de uma escolha cultural. É esta a ideia final deste livro.

(1) Krier, Léon - Arquitectura : Escolha ou Fatalidade. Editora ESTAR, Lisboa, 1999. Tradução de António Sérgio Rosa de Carvalho. Desenhos do autor.
Francisco Cabral de Moncada