segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

EXPRESSO DO OCIDENTE

Segunda-feira, 21 de Fevereiro
Um desafio: imagine o leitor que no final da semana passada, em precisando de um atestado médico, se deslocava ao Centro de Saúde e, desconfortável com a previsível demora, mandava às malvas as senhas e a ordem de chegada e entrava pelo consultório dentro exigindo o despacho rápido da médica de família. Imagina o desfecho? Assim de repente, eu arriscaria o insucesso da missão fosse em virtude da rápida intervenção do segurança ou por via dos restantes pacientes que, presumia eu, não achariam graça à brincadeira. O certo é que me equivoco: vejo agora que na semana passada o extraordinário Armando Vara (cada vez mais um caso de polícia), assegurou justamente o êxito do feito perante a inacção do segurança e da médica. Já os demais pacientes, ao invés do que mandaria o bom-senso - ir atrás do sr. Vara e metê-lo por uma orelha no final da fila -, optaram (os que optaram...) por uma reacção extraordinária: denunciar o episódio à TVI! Ora pensem na opção tomada pelos "populares" e constatem o absurdo de boa parte da concepção moderna da existência: não resolver coisa alguma mas mostrar a patifaria em horário nobre. Assim vamos...
Em dia dedicado à saúde, cabe dizer que com igual insanidade segue a cruzada anti-tabágica. Por estes dias, nas vésperas do Estado de Nova Iorque decretar a proibição de fumar em jardins e praças ao ar livre (coisas que interessam porque por via de regra estas modas americanas tendem a cruzar o oceano), ficamos agora a saber que a interpretação da lei que por aqui temos vai no sentido de decretar a impossibilidade de uma pessoa fumar um cigarro na sua própria casa se a mulher-a-dias por lá estiver a passar as calças a ferro. Extraordinário! Agrada-me a preocupação desta gente para connosco, iluminados a quem devemos a alegria de poder morrer cheios de saúde!
Terça-feira, 22 de Fevereiro
Está confirmado: a CDU da senhora Merkel perdeu as eleições de domingo em Hamburgo, primeiro de seis actos eleitorais estaduais que neste ano de 2011 vão provocar cabelos brancos à líder germânica e entreter um povo que, estimo eu, talvez esteja um nadinha farto de trabalhar para pagar as tropelias do nosso brilhante Engenheiro e do "socialismo democrático" que, como é sabido, se constitui como uma doutrina que corre sobre rodas enquanto há dinheiro para rebentar distribuindo em paralelo mais algum pelos muitos boys que gravitam em torno da causa. Tudo isto na mesma altura em que, garantem as gazetas, a despesa do Estado conseguiu crescer em Janeiro. Trocado por miúdos: os rapazes subiram freneticamente taxas e impostos, desceram em proporção idêntica salários e apoios e... mesmo assim... terão logrado gastar mais dinheiro. Ora, em chegando tal feito aos pasquins alemães pode até dar-se o caso de ser a senhora Merkel a não chegar ao fim deste ciclo eleitoral.
Quarta-feira, 23 de Fevereiro
A coisa não espanta mas não só merece como exige referência: na Assembleia da República, PS e PSD entendem-se às mil maravilhas - como aliás sucede em tudo o que é relevante - para inviabilizar projectos da oposição parlamentar que visavam no essencial equiparar os salários dos gestores públicos ao vencimento do Presidente da República. Convinha que os nossos patrícios se detivessem no facto por um minuto: sempre que o objectivo é ir ao nosso bolso, e mais ainda se se trata de defender o bolso das enormes legiões de aparelhistas e outros inúteis que enchem os agrupamentos da rosa e da laranja, Sócrates e Passos Coelho entendem-se na perfeição. É assim há décadas, foi assim nos PEC's a que já perdemos a conta, foi assim no Orçamento que nos estrangula o final de cada mês, será assim sempre e quando estiverem em causa os interesses particulares do "arco constitucional". Arriscaria que, salvo os inúteis visados, não se encontra na rua um único português que não reconheça a validade da tese. Mas arriscaria de igual modo que, em próximas eleições, esses mesmíssimos portugueses a quem foram à carteira mais os da "Geração à rasca" que aparentemente não chegam a constituir carteira, vão sufragar em massa essas mesmas opções, as caras e os interesses de sempre. Aposto que foi a pensar nisto que os Deolinda deram largas àquela coisa do "Parva que sou".
Quinta-feira, 24 de Fevereiro
O país está hoje em polvorosa com a intervenção de um grupo de Operações Especiais na cadeia de Paços de Ferreira. Os factos (e as imagens) são do conhecimento público dado que alguém com acesso ao documento raciocinou no mesmo quadro mental dos utentes do Centro de Saúde do sr. Vara: se a coisa não aparece na televisão não existe... As imagens são fortes, reconheço, com um indivíduo que manifestamente não joga com o baralho todo a ser alvejado por uma arma "Taser" que está na posse do grupo de intervenção constituído por homens fortemente armados (e escudados pelo Incrível Hulk!...). Confesso que estando longe dos amplos dotes e conhecimentos do Prof. Marcelo - que tudo abarcam do Direito Constitucional até à utilização do fio telefónico pelas tribos da Papua -, não me é fácil ter opinião sobre o assunto para além daquilo que manda o bom-senso. Há no entanto duas notas que não posso deixar de alinhavar a respeito e que têm a ver com a má semana das polícias e com a clara incapacidade do ministro da Administração Interna para ocupar a pasta. Com efeito, já na noite de segunda-feira as televisões nos ofereciam imagens espantosas em que o Corpo de Intervenção, depois de resolver carregar sobre uma bancada de um estádio de futebol, se viu obrigado a bater em retirada, tipo fuga, posto que a malta não reagiu com a mesma pacatez verificada em Paços de Ferreira. Convenhamos que o filme, para os que se preocupam com a imagem e a autoridade do Estado, é penoso até para quantos, como eu, frequentam amiúde os estádios deste país e bem conhecem os inacreditáveis impulsos policiais que muitas vezes incendeiam ambientes já de si quentinhos. Pior, só mesmo os responsáveis da Administração Interna (que, a despropósito, se devia chamar Interior posto que não é possível constituir a pasta da Administração Externa): sempre prontos a seguir o que pensam ser a maioria da "opinião pública", os cavalheiros logo anunciam um mar de inquéritos e comissões enquanto, nas entrelinhas, passam uns raspanetes às forças policiais. Esta gente que mais directamente simboliza o Estado é, curiosamente, um espelho fiel do estado a que isto chegou.
Sexta-feira, 25 de Fevereiro
No mar e nos rios, as televisões oferecem-nos imagens de manifestações de pescadores. Queixam-se de terem passado a ser obrigados a pagar 118€ para a Segurança Social à cabeça, tipo pagamento por conta, mesmo nos meses em que não vão ao mar. Para um País de Marinheiros e num sector que já foi nobre e que já foi grande mas que é parente pobre da estratégia nacional desde a adesão à União Europeia com a prestimosa ajuda do actual Presidente da República, eis mais uma machadada por via do pacote "Código Contributivo" que, para variar, merece o beneplácito do PSD.
Sábado, 26 de Fevereiro
Não bastando a má semana das polícias, o Expresso dá-nos a tropa por via da publicação dos célebres telegramas da estranhíssima Wikileaks que garante que gostamos de comprar armamento como quem compra brinquedos. Para mais, diz-nos o semanário do dr. Balsemão que os factos narrados pelo embaixador americano em Lisboa dizem como segue: "Portugal tem mais generais e almirantes por soldado do que quase todas as outras forças armadas modernas: 1 para cada 260 soldados. Em comparaão, os Estados Unidos têm um rácio de 1 para cada 871 soldados", além de "170 generais adicionais que recebem o ordenado por inteiro enquanto se mantêm inactivos na reserva".
A gente lê isto e lembra-se logo do nosso Rodrigo Emílio: "Tanta farda e fardeta / e treta, treta e mais treta"...
Pedro Guedes da Silva

domingo, 27 de fevereiro de 2011

A CAUSA DUMA COISA MUITO CÁ DE CASA

A expressão «Sétima Arte» anda na boca de toda a gente. Falemos, então, sobre a origem dessa — feliz — designação para o Cinema.
Foi o escritor, jornalista, crítico e dramaturgo italiano Ricciotto Canudo (Bari, 1879 — Paris, 1923) que baptizou o Cinema de Sétima Arte. Canudo fundou a revista Montjoie! (1913-1914), com sede em Paris, e manteve uma tertúlia com — entre outros — Léger, Apollinaire e D’Annunzio. Em 1920, cria o «Clube dos Amigos da 7.ª Arte», que é, assim, precursor do movimento do cine-clubismo. Edita, finalmente, em 1923, a Gazette des sept arts, revista fundamental como suporte teórico das vanguardas estéticas da época.
Se, por esta altura, já percebemos que estamos perante um teórico da Arte, não estranharemos saber que Canudo lança, em 1923, o Manifeste des Sept Arts, após uma série de outros textos preparatórios; o primeiro dos quais data de 1908, e num deles, em 1912, cunhou a nossa expressão. Esta publicação definitiva das suas inovadoras ideias, surge como legitimação estética do Cinema, elevando-o à categoria das restantes Artes.
Em primeiro lugar, chama a atenção, no seu Manifesto, para o facto de o Cinema ser muito mais do que apenas indústria e comércio, resgatando-o à mera tentação material e convocando-o para as fileiras da espiritualidade criadora. De facto, o Cinema é, até, antes de tudo — Arte.
Depois, Canudo diz-nos, do seu ponto-de-vista, quais são as seis Artes que antecedem cronologicamente o Cinema. Desde a Antiga Grécia que as Artes têm andado numa roda-viva, no que diz respeito à sua catalogação (convém nunca perder de vista as nove musas inspiradoras). Ainda bem que se trata de uma conversa em aberto, pois isso é um sinal da vitalidade dos pensadores e artistas da Cultura Ocidental. Para este escritor italiano do século XX, as Sete Artes são: Arquitectura, Escultura, Pintura, Música, Dança, Poesia e Cinema. Se as três primeiras — artes plásticas, porque do espaço — aparecem, segundo Canudo, por necessidades materiais (abrigo, no caso da Arquitectura, com as suas complementares Pintura e Escultura), para, no entanto, logo depois se afirmarem artisticamente, já a Música é fruto duma vontade espiritual de elevação e vai irmanar-se com os fundamentos rítmicos da Dança e da Poesia. Curiosamente, no pensamento do teórico italiano, a Dança e a Poesia antecedem a Música, que só se autonomizará destas quando se liberta e chega à sinfonia, como forma de música pura.
É óbvio que a génese das Artes aqui descrita tem de ser contextualizada na época em que foi criada — início do século XX, em toda a sua pujança Futurista (Graças a Deus!) — e entendida como visão pessoal do seu autor. No entanto, se aqui a trago, é porque sem ela não poderemos compreender a expressão «Sétima Arte».
Por fim, entramos naquilo que me parece ter resistido ao crivo do tempo (esse destruidor de mitos de vão de escada) e manter, ainda hoje, enorme actualidade.
Canudo apresenta o Cinema como síntese de todas as Artes e como Arte Total — ao que não é alheio o pensamento de Wagner; assim, na plenitude da sua linguagem estética, a Sétima Arte integra elementos plásticos da Arquitectura, da Pintura e da Escultura e elementos rítmicos da Música, da Dança e da Poesia, que se vão todos revelar nos filmes nas seguintes áreas técnicas (podendo nós tentar fazer um jogo de concordâncias): imagem ou fotografia (ainda a preto-e-branco, em vida de Ricciotto Canudo); som ou, mais tarde, banda sonora (note-se que, quando o italiano teorizou, o Cinema era Mudo e os filmes eram acompanhados, apenas, pela interpretação ao vivo de uma partitura musical durante a sua projecção nas salas); montagem, que confere um sentido às imagens; cenografia, que entretanto evolui para direccção artística, alargando o seu campo de intervenção; realização, que tem como missão a planificação do filme, a orquestração dos vários elementos aqui referidos, assegurados por outras tantas equipas técnicas, e a direcção dos actores; e, por último, sendo no entanto o princípio de tudo, argumento.
Mais ainda: como grande síntese criadora — para além de fusão —, o Cinema une Ciência e Arte, num casamento feliz, e produz uma novíssima Linguagem, para a qual as outras Artes tenderam desde sempre, de imagens em movimento e som — formas e ritmos à velocidade da luz!
É, pois, a última das Artes, fechando o ciclo da Estética; mas, essencialmente, a que, incorporando todas as outras, transporta o património histórico e estético da Civilização Ocidental e o projecta no tempo e no espaço através da permanente reformulação das suas ancestrais e intemporais narrativas.
Haja novos realizadores portugueses à altura desta missão universal.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

CATARINA SAYS...


Es-colher é semear
A vidaJustificar completamente leva-se a escolher. Sabemos isso desde logo. As escolhas fazem parte do caminho:
qual a cor preferida, qual o brinquedo eleito, qual o clube de futebol, se queremos croquetes ou feijoada, se gostamos mais de praia ou de campo, se a musica é rock, pop, clássica ou outras.
Na medida em que não temos a capacidade de tudo ter, de tudo fazer, de tudo acontecer, passamos a vida a tomar decisões, a escolher, o que se quer colher.. decidir é semear. É semear apostando na escolha, acreditando que por ela, pomos tudo e encontramos mais de nós em nós.
Livre possibilidade nas escolhas que são possíveis.
Uma vez feita e realizada a escolha, sobra o contentamento de a viver na certeza de saber que aquela era, ou é, a melhor. E a melhor escolha é invariavelmente a que nos faz sentir melhor.
Vou por ali, porque a luzinha verde dentro de mim me diz em voz baixa:
"por ali é melhor, mesmo que não seja mais fácil"- a verdade da escolha, na escolha da verdade.
Nem sempre se deve seguir à risca as escolhas espontâneas e tentadoras que se nos deparam.
Seguir à risca pode ser arriscado. Andando na Vida, e escolher para semear, na vantagem do tempo mestre que quanto mais passa, mais nos ensina.
E assim, a favor do vento ou em contra luz, a ideia na escolha reluz.
Catarina Hipólito Raposo

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

DO ROMANCE HISTÓRICO ENQUANTO MANUAL DE CONDUTA

Releio O Hussardo, de Arturo Pérez-Reverte. Este seu primeiro livro, de 1983, editado em Portugal a partir da revisão do autor feita em 2004, é um romance histórico, passado em 1808, na invasão napoleónica de Espanha.
O fio-condutor da narrativa é assegurado por dois jovens hussardos (oficiais da cavalaria ligeira francesa), que acamaradam a partir de sólidas afinidades de carácter e gosto, sendo provenientes, no entanto, de classes distintas. Os relatos intimistas, com deliciosos detalhes realistas, revelam uma fina sensibilidade para construir personagens e ambientes autênticos; por outro lado, as descrições das batalhas e de toda a militaria prendem pela sua escala grandiosa e revelam um profundo conhecimento de História Militar; e, a Andaluzia está pintada de tal maneira — telúrica e sensual — que sentimos o seu Sol queimar e a sua luz cegar. Os tradicionais valores de qualquer cavalheiro estão aqui bem esplanados: coragem, cultura, honra, fidelidade, heroísmo, hierarquia, camaradagem, sobriedade. Note-se bem que a acção decorre na sequência de todos os males erradiados a partir de França. Os nossos heróis remam, portanto, contra a maré dos novos tempos.
Perante uma obra assim, agradeço à Literatura por ser uma Arte que permite a pausa, a aceleração, o retardamento... — ou seja: possibilita ao leitor comandar o tempo e o ritmo de fruição da obra, para melhor a poder saborear. Aqui, não há ditadura do olhar, como, por exemplo, no Cinema. Posso parar para pensar, e reler, e acelerar à procura do desfecho de uma cena, ou abrandar numa passagem cativante.
Mas, afinal, o que é que esta obra tem?... Faz-nos interrogar sobre o que andamos nós aqui a fazer, neste século materialista. Leva-nos à nostalgia de um passado em que o espírito imperava. Sentimos saudades de um tempo em que os homens se olhavam nos olhos — enquanto amigos, adversários ou inimigos.

ADENDA AO POSTAL ANTERIOR

Já se sabe que a bela Bruni não tem voz (o que, aliás, só lhe dá graça), mas tem corpo e alma — o que, cá para mim, contrastando com estes desgraçados, insípidos e insonsos tempos em que vivemos, mais do que suficiente, é tudo!

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

VOZ PARA HOJE

A DE AUTOR

Alfred Hitchcock nasce, em Londres, em 1899. Sendo, pois, à partida, um homem directamente herdeiro do espírito do século XIX, revela, no entanto, um extraordinário sentido de utilização dos modernos meios de marketing e publicidade (antecipando-os), para divulgar as suas obras. Cedo irá transformar em marca o seu nome, tornando-o reconhecível e apetecível para toda a comunidade mundial de cinéfilos, e, mesmo, para os grandes e despersonalizados públicos generalistas. Revela-se, ainda, e dentro desta estratégia de comunicação global, um especialista nas relações públicas; especialmente com a imprensa, com o objectivo de se promover.
Dito isto, há que afirmar, de imediato, que toda esta comunicação era apenas a ponta-de-lança de uma Obra complexa e profunda.
Hitchcock, oriundo de uma família de classe média-baixa, é instruído pelos Jesuítas. Se refiro este facto é porque os seus filmes virão a reflectir uma série de conhecimentos que terá assimilado nos seus estudos feitos numa escola católica destes, bem conhecidos pela vasta cultura que forneciam; terá, também, através dos referidos Jesuítas, tomado contacto com Chesterton, que lerá entusiasmado na juventude. Outras influências literárias que o marcaram, mais tarde, como auto-didacta, foram Poe e Wilde.
Por outro lado, devorava jornais e lia revistas de criminologia e de Cinema. Curioso é constatar o casamento entre estas fontes de inspiração para o seu despertar como autor de filmes. Os seus temas serão, principalmente, os seguintes: falsos culpados, assassínios, trocas de identidade, medo, voyeurismo, paixões frias mas arrebatadoras.
Porém, antes de chegar à realização de fitas, começa por desenhar intertítulos para filmes mudos, escrever argumentos e trabalhar como assistente de realização. Esta conjugação, de conhecimento prático da técnica cinematográfica com a cultura que ia adquirindo pela leitura, possibilita uma mestria na criação das suas narrativas fílmicas, apimentadas com o tão apregoado suspense.
Na Sétima Arte, Hitch (gostava de ser assim tratado) bebeu de várias fontes: Fritz Lang e Murnau — esses dois mestres do mudo alemão — foram determinantes para a estruturação da sua linguagem estética. Esteve na UFA — os grandes estúdios de Berlim — e conheceu-os pessoalmente. Lá trabalhou e lá filmou. Esta marca será visível, claramente, nos seus filmes mudos; e, mais subtilmente, nos sonoros.
O seu género eleito será o melodrama policial, pontuado de fantástico e de mistério. Esbate, pois, assim, as fronteiras de vários géneros convencionais, criando uma abordagem própria, com elementos retirados de todos eles.
No que toca à realização, o seu estilo é essencialmente visual, dando-nos a sensação de que aquelas histórias só fazem sentido em Cinema; isto é, por escrito não teriam o mesmo impacto. Sabia de tal forma o que queria que a montagem das suas películas seguia ao milímetro o que ele próprio tinha definido na planificação (última fase do argumento, em que este fica pronto a ser filmado). A esta atitude chama-se trabalhar com «guião de ferro». Hitch dizia que o acto de rodar era uma maçada, pois já sabia exactamente como seria o filme ao tê-lo definido na planificação. Esta ideia traduz uma inabalável confiança do cineasta em si próprio e uma invulgar capacidade de visualização.
Hitchcock assentava a sua estética numa cumplicidade com o espectador. Dava-lhe alguns conhecimentos secretos sobre a acção, mantendo-o ansioso pelo desfecho da narrativa. Esta tensão psicológica pode até levar o espectador a querer comunicar com a personagem ameaçada na tela, para a avisar do perigo... Eis a força manipuladora do suspense.
Não havendo, no entanto, técnica que resista à falta de ideias, é preciso deixar bem explícito que o Cinema de Hitch assenta em temas fortes, já atrás referidos. Recapitulando, e desenvolvendo: a culpa — com o inocente falso culpado como fio-condutor da narrativa, entrando aqui, por vezes, a troca de identidades; o medo — pontuado pelo susto, e nas margens do terror; o desejo — com simbologia e alegorias sexuais; a ansiedade — mantida pelo suspense; o voyeurismopeeping-tom, em bom inglês, espreitando e violando a esfera privada e íntima; a autoridade — que assegura a investigação criminal, mas também pode ser desafiada (detestava polícias vulgares, de «ronda»); a morte — sob a forma de assassínio, o crime mais grave, e que os espectadores, morbidamente, gostam de ver no recatado conforto da sala escura. Todos eles temas de identificação e projecção psicológica do espectador. O Cinema na sua mais poderosa forma alquímica, servido pela mão do mestre Hitchcock.
Importante é vencer o medo, esperar para ver o desfecho, e perceber que a chave dos seus filmes é o triunfo final da Luz sobre as Trevas. Toda a sua Obra é uma variação sobre este principal grande Tema.
E, se não menciono um único filme do realizador, a justificação é simples: devem ser vistos todos, cronologicamente — dos mudos aos sonoros, dos ingleses aos americanos, dos filmados a preto-e-branco aos rodados a cores —, com o objectivo de se conseguir captar, na sua plenitude, toda a sua temática de fundo, e todo o seu estilo visual e sonoro profundo; enfim, todas as suas indeléveis marcas autorais.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

SEM AGENDA


Léon Krier e a Modernidade da Arquitectura Tradicional (Parte II)
Concluo hoje a reprodução de um artigo que escrevi em 2004 para o Boletim e o sítio electrónico do grupo universitário Arautos d’El-Rei, de Coimbra, e nesse ano também publicado no jornal O Dia, a propósito da edição portuguesa do livro maior do arquitecto luxemburguês Léon Krier (1). A Parte I do artigo foi publicada neste espaço a semana passada.

Elevada atenção é dedicada à definição do objecto arquitectónico e à clarificação de conceitos (modernidade, modernismo, tradição, tipo, composição, invenção, inovação, construção vernacular, arquitectura clássica, estilo,...), a começar pela importante distinção entre culturas tradicionais (artesanais, tendo por objectivo a produção de objectos de uso a longo prazo) e modernistas (industriais, tendendo a produzir objectos de consumo a curto prazo).

Krier relembra a diferença fundamental estabelecida por toda a arquitectura tradicional entre os edifícios públicos e sagrados - a ‘Res Publica’ - e os utilitários e privados - a ‘Res Privata’ - sendo a verdadeira cidade, com os seus monumentos criteriosamente inseridos na malha urbana geral, uma combinação das duas. Aponta o arranha-céus e o “arranha-terra” utilitários, bem como alguns pretensiosos complexos habitacionais ou de negócios, como monumentos fictícios, pois proeminência ou vastidão não são garantia, e monotonia e estatuto funcional são inadequados, à criação de significado monumental. (a propósito da liquidação de significados, terá sido uma simples distracção o recente “passo ao lado” a cavalo, de D. João I, para o remate de um eixo iluminista? ; e que pensar do tratamento dado a D. João V, em Mafra? - a lista poderia continuar...).

Quanto ao objecto arquitectónico (a cidade, a rua, a praça, o templo, a igreja, o campanário, a casa, o palácio, a fábrica, a cabine telefónica, o átrio, a abóbada, a coluna, a arquitrave, a porta, a janela,...), invenção humana de uma gama necessariamente limitada, ele é sempre denominável por uma convenção duradoura e de valor constante pela qual a sua aparência e função estabelecem ...«uma relação de verdade evidente» (união entre símbolo e significado, forma e conteúdo, tipo e função, estilo e estatuto). É também notado que a maior parte das inovações arquitectónicas do século XX são ...«transferências de ideias pertencentes a outras categorias» (edifícios que emitam a aparência do paquete, do comboio, da refinaria, do contentor,...) bem como a ...«mistura de géneros» (a “cidade-jardim” não é cidade nem jardim; a “sala polivalente” não substitui convincentemente a igreja, o teatro, o ginásio; assim também o “parque de negócios”, a “máquina de habitar”, o “espaço verde”, o “mur-rideau”,...). Não têm a capacidade de ...«substituir nem o vocabulário, nem a tecnologia nem a natureza própria do objecto arquitectónico». ...«Erros de escala, de proporção e medida, de forma, conteúdo, estilo, tipo e carácter são sempre desqualificados publicamente através do uso espontâneo de “alcunhas” pertinentes» ( “refinaria de petróleo” para o centro Beaubourg de Paris, “o radiador” para a sede da ONU, ou, lembro agora, “o palácio de Ceausescu” para a sede da CGD em Lisboa ou “o King Kong” para a negra torre de escritórios na baixa de Coimbra) apenas reveladoras de poder de imaginação e capacidade de discernimento.

Por outro lado, a substituição generalizada de paredes mestras por estruturas sustentadoras separadas dos paramentos exteriores, e a dos materiais naturais pelos artificiais, tem propiciado o aparecimento de uma imensa vaga ‘kitsch’, pós-modernista ou tradicionalista, caricatura de uma autêntica cultura tradicional e reveladora de uma ...«ruptura ontológica ente o ser e o parecer» ao nível da relação entre tecnologia e expressão arquitectónica. Pela dimensão deste fenómeno, Krier considera-o mesmo o maior antagonismo hoje existente no seio da arquitectura.

Uma extensa parte do livro é totalmente dedicada aos problemas do urbanismo, com larga explanação das teses do autor, as quais integram hoje as recomendações europeias.
Começa por identificar a causa da maioria dos problemas: a sobreexpansão monofuncional, vertical no centro das cidades e horizontal nas periferias, condicionando-se reciprocamente. O ‘zoning’ monofuncional (residencial, escolar, comercial, industrial, administrativo), propagado pela Carta de Atenas de 1931, é tido como o mais grave produto ideológico do urbanismo modernista e essencialmente uma técnica de desenvolvimento industrial causadora da …«fragmentação anti-urbana e anti-ecológica dos aglomerados integrados e multifuncionais».
Para futuro explica como, atendendo à escala nacional e continental a que se decidem hoje os grandes imperativos de transformação, se apresenta a necessidade de ligar crítica ecológica e projecto de cidade num contexto continental de longo prazo, em complemento à constituição política das nações.

Léon Krier diz-nos que as potencialidades da arquitectura tradicional continuam intactas, referindo que existem técnicas artesanais para construir rapidamente e mostrando como o rendimento global de um edifício, em termos de eficácia construtiva, económica e ecológica, tem de ser calculado tendo em vista o ciclo de vida do edifício, os tempos e custos de manutenção e a relação ecológica do edifício com o contexto. Sendo hoje a questão que se coloca a recuperação da sua qualidade, muito degradada pela industrialização da construção, que destruiu o artesanato tradicional e o seu ensino, fica evidente a necessidade da restauração do ensino de um artesanato moderno.

Nada é irreversível. O nosso futuro dependerá sempre, em última análise e no que for dado decidir aos homens, de uma escolha cultural. É esta a ideia final deste livro.

(1) Krier, Léon - Arquitectura : Escolha ou Fatalidade. Editora ESTAR, Lisboa, 1999. Tradução de António Sérgio Rosa de Carvalho. Desenhos do autor.
Francisco Cabral de Moncada

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

EXPRESSO DO OCIDENTE

Terça-feira, 15 de Fevereiro
A imprensa é unânime: de um momento para o outro - desconhece-se se por obra e graça exclusiva de uma máquina fiscal cada vez mais totalitária -, continua a aparecer por esse país fora gente morta há séculos sem que aparentemente alguém soubesse. Recordistas de telemóveis, portáteis e gadgets diversos, "permanentemente contactáveis" e prontos a atender o telefone mesmo nas ocasiões mais inacreditáveis (se é que me faço entender... - jurava há dias um estudo académico norte-americano), os europeus nunca estiveram provavelmente tão sós, tão distantes do seu próximo. No fundo, a indiferença é o ritmo próprio de um mundo que estupidifica os indivíduos e muito em especial os mais novos, um mundo herdeiro de uma divisão entre capitalismo e comunismo, filhos ambos de uma mesma linha de pensamento materialista que, ao lograr excluir alternativas do palco mediático, determinou a derrota, por muitas décadas, do espírito face à matéria. Os factos que por agora vão ocupando os jornais até que estes se esqueçam, um destes dias, da sua importância, são impressionantes por tudo o que revelam sobre a sociedade que foi sendo construída mas não causarão espanto aos menos desatentos. Se me permitem o recurso à lucidez usando cabeça alheia, tudo isto foi explicado por Frei Fernando Ventura numa notável entrevista que, no Outono de 2010, concedeu à SIC Notícias. Já aí se falava de "gerações de monstros", da "história dos novos e da memória dos velhos que não se encontram", dos "depósitos de velhos" e, como bem se recordam os que viram, de um país que mais se parece com uma "barraca com um submarino estacionado à porta". Vejam - ou revejam - que em qualquer dos casos não ficam a perder.
Quinta-feira, 17 de Fevereiro
Há dias, no recomendável Pena e Espada, Duarte Branquinho citava Pierre Vial que rematava um raciocínio como segue: "Nós não temos ilusões: estamos e escolhemos estar no campo dos malditos. Para sempre. E estamos por gosto, já que é o único sítio no qual podemos cruzar-nos com homens e mulheres dignos de estima". Vem-me isto à cabeça no dia em que se passam três anos sobre a declaração unilateral de independência do Kosovo, um dos maiores disparates que a história das Relações Internacionais observou. Juravam então os estrafegas norte-americanos, ainda a recuperar dos alucinogéneos que lhes permitiram lobrigar armas de destruição em massa no Iraque e lançando mão de uma assinalável campanha de intoxicação ideológica, que daquele lado é que estavam "os bons". Os sérvios, esses… eram os bandidos. Ao longo destes três anos foram-se sucedendo os previsíveis reconhecimentos internacionais da marosca, incluindo o do governo português (o que por si só seria indício bastante para que a comunidade internacional pudesse verificar o erro...), mas o facto é que a engenharia foi um êxito: Hashim Thaçi, o obscuro primeiro-ministro kosovar, é agora acusado de tráfico de drogas, de armas e de órgãos humanos, para além de outros delitos menores. Uma coisa é certa: esta gente não se vai cruzar com Pierre Vial no "campo dos malditos". Valha-nos isso.
Sexta-feira, 18 de Fevereiro
Mantemo-nos nos domínios do inexplicável: a imprensa francesa dá ampla nota da última (e luminosa) intenção de Sarkozy: assustadíssimo com sucessivas sondagens que creditam Marine Le Pen com 20% das intenções de voto nas próximas eleições presidenciais, o presidente (semi-)francês lembrou-se de tentar seduzir o eleitorado nacionalista decretando a obrigatoriedade de celebrar em francês todas as celebrações religiosas - as Missas, portanto. A ideia atinge-se facilmente: chatear árabes, mesquitas e minaretes. Sarkozy - ou quem é pago para pensar por ele - esqueceu-se de dois pequeníssimos pormenores o que, sendo vulgar, talvez lhe possa agravar os dissabores que inicialmente pretendia evitar: há muita "extrême droite'' que reza em latim e, não menos relevante, há inúmeros emigrantes europeus totalmente integrados na sociedade francesa (portugueses, por exemplo), que celebram a Missa nas suas línguas de origem e que não tencionam alterar os hábitos menos profanos. Curiosamente e tanto quanto é possível saber, estes últimos votaram Sarkozy há cinco anos de uma forma esmagadora. Voltarão a fazê-lo se coisas deste tipo forem para levar a sério?
Contrariando a tese de que os homens são todos iguais, se uns decretam a mais há outros a quem nada se lhes ocorre: titula hoje o i que os ministros "trabalham cada vez menos" (o que, convenhamos, não espanta o cidadão comum e muito menos justifica a capa do periódico), e que os ministérios da Cultura e do Ensino Superior não produziram em 2010 um único decreto-lei. Ora eu, ao contrário da indignação da maior parte dos comentadores, estou-lhes grato e aplaudo o exemplo. Na mesmíssima semana em que se garante que Portugal esteve quarta-feira a uns minutos da bancarrota não fosse a rapidez com que o Banco Central Europeu desatou a comprar-nos a célebre dívida para salvar o pescoço do bloco central, estes dois titulares de importantes pastas poupam tinteiro, papel, agrafos, envelopes, estafetas, telefonemas e, de caminho, ainda poupam nos disparates. Pena que não poupem nos assessores que reúnem incansavelmente para concluir nada ser preciso decretar. Ainda assim e apesar de tudo, louvados sejam.
Sábado, 19 de Fevereiro
Em vésperas do plebiscito a Sócrates a que por estes dias se dedica o agrupamento da rosa, Manuel Maria Carrilho acusa a direcção do partido de "impor regime de liberdade condicional aos militantes". É pena, para o país talvez não fosse pior ter-se optado pela prisão preventiva para a maior parte do clube...
Pedro Guedes da Silva

É A HORA!

Chegou a hora da estreia do meu convidado das Segundas-Feiras. Chama-se Pedro Guedes da Silva. Dispensa apresentações. Passará a escrever no blogue Eternas Saudades do Futuro numa coluna semanal da sua autoria intitulada «Expresso do Ocidente».

domingo, 20 de fevereiro de 2011

REVISÃO DA MATÉRIA DADA II

«Sem Agenda», por Francisco Cabral de Moncada.

REVISÃO DA MATÉRIA DADA I

«Catarina Says...», por Catarina Hipólito Raposo.

AVISO AOS LEITORES

Por razões de ordem técnica e estética, os textos dos convidados semanais do Eternas Saudades do Futuro deixarão de ser publicados em itálico.

FALEMOS DE POLÍTICA

Nestes desgraçados tempos modernos, toda a gente tem opinião sobre todo e qualquer assunto. A par da minha querida Sétima Arte, a Política é outra das áreas do saber e da expressão humana em que uma turba multa de especialistas feitos a martelo nas escolas do sistema debita um chorrilho de asneiras de manhã à noite nos convencionais me(r)dia. Indivíduos que flutuam como rolhas na superficialidade da espuma dos dias mas que não possuem um mínimo de conhecimentos que lhes permita analisar em profundidade a Coisa Pública. Para esses, um manual de Ciência Política é coisa nunca vista nem ouvida e a História é algo de estranho e longínquo. Por essas e por outras, e porque prezo muito os meus leitores, convidei, para vir falar semanalmente de Política nesta casa, uma pessoa que realmente sabe da poda, pois está nos antípodas do anteriormente descrito, e trata os assuntos com honestidade intelectual e em Língua Portuguesa (ambas em via de extinção). Abrilhantará, a partir de logo mais ao serão, as Segundas-Feiras do Eternas Saudades do Futuro.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

CATARINA SAYS...


Paint the sky, make it yours.


DIGITALIZADA, A NOSTALGIA DEVERIA CONSUMIR-SE SEM GRANDE ESFORÇO.
Há vezes, que são cada vez mais raras, em que a tristeza invade o dia e a noite, a memória como um livro de capa preta assume o tempero e comanda o meu estado, manda-me imagens e sensações velhas como se as estivesse a viver agora.
Sem saber como nem porquê, perpetuam-se numa noite que parece não querer acabar e variam a sensação do eterno com luz.
É como se o eterno que não imagino fosse um túnel escuro, do qual não acho a saída.. depois adormeço numa espécie de consolo sabendo que o dia vem, e a luz também.
Mas, na contagem dos dias quase todos, o eterno tem sempre Luz.
Porque para mim a nostalgia tem romantismo lá dentro.
Assim a digitalizo.
É afinal a única forma que conheço, e sei, de guardar as coisas na Alma.
Nostalgia misturada com saudade, faz-me rever a matéria.
E tudo por causa da memória.
A memória é como uma máquina, um motor de busca interna que nos apresenta as sensações de ontem ou de muito longe, numa moldura de hoje.
Nos botões da memória minha, revejo cheiros e sabores, músicas e cores, paisagens e vozes, pessoas e lugares.
É me dado saber por aí, que tudo isso que revejo foi vivido por mim.
É a minha história de vida registada em contextos e cenários que me fazem tanto sentido, porque através desse álbum percebo onde estou e como cheguei aqui.
Somos de facto as nossas circunstâncias.
Únicos responsáveis pela felicidade, os desejos vão sendo espalhados pelas paredes da minha casa.. e assim vivo, contente.
Catarina Hipólito Raposo

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

SEM AGENDA



Léon Krier e a Modernidade da Arquitectura Tradicional (Parte I)
Estas linhas foram publicadas em 2004 no Boletim e no sítio electrónico do grupo universitário Arautos d’El-Rei, de Coimbra, assim como no jornal O Dia. Por manterem hoje, a meu ver, a mesma actualidade, achei por bem reproduzi-las aqui na integra, divididas em duas partes.

O aspecto caótico de muitas paisagens e cidades; a tristeza, o tédio ou a insegurança dos antigos centros desertificados ou das periferias irreconhecíveis, deprimentes ou selváticas; a indigência ou arbitrariedade arquitectónicas e a má qualidade da maioria das novas construções desde há mais de cinquenta anos; a dificuldade constante das deslocações entre casa, trabalho e lazer, com desperdício sistemático de tempo, energia e saúde - eis alguns dos mais penosos e persistentes efeitos da nossa civilização industrial na sua feição actual.

Apesar do aparente conformismo geral, muitos e cada vez mais se inquietam e justamente indignam, não só por não vislumbrarem sinais decisivos de correcção, mas também por não acharem acesso a informação esclarecedora das verdadeiras causas destas desordens.

Léon Krier, arquitecto luxemburguês nascido em 1946, conhecido internacionalmente como renovador de uma arquitectura e urbanismo tradicionais, diz-nos que esses e outros fracassos não são uma fatalidade, nem acham justificação no laissez faire; são sim a …«materialização de uma ideologia errada de planificação» (produtora do ‘zoning monofuncional’) e, ao nível da teoria da arquitectura e no vazio deixado da falência geral das doutrinas modernistas (funcionalismo, racionalismo, construtivismo, utilitarismo), o resultado da aplicação dogmática de um conjunto de teorias pessoais e “experimentalistas” pós-modernistas (a incerteza, a ironia, a desconstrução, a ruptura, a descontinuidade, o substituível) …«opostas a todo o pensamento lógico e explícito».

A edição do seu livro Arquitectura : Escolha ou Fatalidade (1) constitui sem dúvida uma rica e saudável lufada de ar fresco no nosso abafado meio cultural. Este, na aparência, tem vindo a respirá-la em profundo silêncio...

Nesta obra o autor identifica e mostra à evidência a natureza daqueles erros e dogmas. Com uma linguagem clara e num estilo sereno mas intencional, a que não falta o humor, e recorrendo a cada passo a uma notável série de desenhos demonstrativos, é contraposta toda uma teoria da arquitectura e do urbanismo, que se quer firmada e amadurecida na História e na consideração de que os imperativos de transformação do ambiente natural e cultural devem ser compatíveis com um projecto ecológico contextual (filosófico, técnico, cultural, moral, económico e estético). Essa teoria tem sido posta em prática, já desde há alguns anos, na construção de grandes projectos de diferentes autores e iniciativa sobretudo privada, em diversos países da Europa e nos Estados Unidos.

De sua autoria é o projecto, em construção, da nova cidade de Poundbury, no Dorset, Inglaterra, promovida pelo Príncipe Carlos. Entre nós, é de salientar que foi consultor na ampliação do Museu de Arqueologia de S. Miguel de Odrinhas, no concelho de Sintra, junto a capela medieval, que tanto nos surpreende na sua aparência de mini-cidade articulada em singela unidade e perfeita integração.

Para Krier, a popularidade evidente dos modelos da arquitectura tradicional não é devida à sua antiguidade nem somente à sua beleza, mas à …«perpetuidade da sua modernidade», tomada esta na sua correcta acepção cronológica e não ideológica. Isso significa a posse de um conjunto equilibrado de valores que não caducam com o passar dos tempos, reunidos afinal na tríade vitruviana: Venustas, Firmitas, Utilitas. (2)

Ao deplorar a miscelânea de estilos como falso pluralismo arquitectónico, atrasado de muitos anos do pluralismo político (onde este razoavelmente funciona, dir-se-ia), e constatar que …«os edifícios modernistas só excepcionalmente revelam capacidade de integração com a arquitectura dos centros históricos», o mesmo autor defende que as diferentes visões se possam expressar na produção de uma ...«pluralidade de cidades e aldeias extremamente diferentes na sua estrutura, na sua arquitectura e na sua densidade».

(1) Krier, Léon - Arquitectura : Escolha ou Fatalidade. Editora ESTAR, Lisboa, 1999. Tradução de António Sérgio Rosa de Carvalho. Desenhos do autor.
(2) Marcus Vitruvius Pollio, arquitecto romano do séc. I aC, autor do tratado ‘De Arquitectura’.

Francisco Cabral de Moncada

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

DIVA DO DIA

Emmanuelle Béart.

AS NOVIDADES NÃO PÁRAM CÁ NA CASA

Em breve este espaço acolherá mais dois convidados semanais: um às segundas-feiras e outro às sextas-feiras, juntando-se à Catarina Hipólito Raposo e ao Francisco Cabral de Moncada.

AO CUIDADO DOS NAMORADOS CINÉFILOS

Os beijos do cinema são beijos com pose mas são beijos sem posse...
ANTÓNIO FERRO
(1895 — 1956)

domingo, 13 de fevereiro de 2011

VIDA E OBRA DOS AUTORES DA SÉTIMA ARTE

O autor dos filmes é o realizador.
Para que meio-mundo acreditasse nisto, foi necessário os jovens turcos dos Cahiers du Cinéma produzirem vasta teoria sobre a matéria, vertida em letra de forma em artigos da sua referida revista.
Cá para mim, no entanto, quem tivesse olhos de pensar já teria percebido, ao ver os grandes filmes da época de ouro de Hollywood, que, embora agrupados em géneros — categorias de produção industrial, mas também estéticas —, as ditas fitas tinham uma assinatura, toda ela marca d’água autoral, por parte do realizador.
Faça-se o teste: entremos numa qualquer sala de cinema a meio da exibição de um filme, vendados (sem saber ao que vamos, olhos e ouvidos tapados); depois, libertados, recuperados os dois sentidos, e após dois minutos em contacto áudio-visual com a película projectada na tela, tentemos adivinhar quem é o seu realizador. Arriscado jogo voyeur este...
Porém, parece-me que quem for verdadeiramente cinéfilo — amigo do Cinema —, e tiver uma cultura filmográfica à altura, logo acertará na mouche: Antonioni, Fellini, Dreyer, Bergman, Ford, Hawks, Bresson, Truffaut, Kurosawa, Ozu — nomes saídos automaticamente, ao correr da pena —, e muitos outros, que poderíamos acrescentar por aí fora, têm linguagens estéticas de tal forma fortes que ninguém que ame verdadeiramente a Sétima Arte poderá confundi-los entre si.
Esta conversa toda tem por objectivo servir de introdução a uma abordagem — infelizmente pouco canónica para os padrões académicos culturalmente correctos — da História do Cinema através da Vida e Obra dos Autores.
Bem sei que não podemos ignorar as três grandes épocas: mudo, sonoro e moderno; nem as principais correntes: expressionismo alemão, impressionismo francês, mudo soviético, etc; nem tão pouco os géneros clássicos, que atingem o paradigma nos E. U. A. com os seus genres indígenas: western, gangsters, musical, aos quais eu gosto de acrescentar o film-noir.
Contudo, olhando noutra direcção, proponho que revisitemos esta Arte, que já atingiu a bela e matura idade de cem anos, tendo os realizadores — grandes mestres técnicos e criadores estéticos — como fios-condutores da sua História.
Assim sendo, iniciarei aqui, em breve, no blogue Eternas Saudades do Futuro, uma coluna dedicada à «Vida e Obra dos Autores da Sétima Arte», alfabeticamente e tudo.
Não perdem pela demora.

PELA NOITE DENTRO (6)

PELA NOITE DENTRO (5)

PELA NOITE DENTRO (4)

PELA NOITE DENTRO (3)

PELA NOITE DENTRO (2)

PELA NOITE DENTRO (1)

CONVITE

Convido os seguidores do Eternas Saudades do Futuro — os quais não tenho aqui à vista, mas que guardo no «Painel de Controlo» (orwelliano nome este!) — a constituírem-se igualmente como seguidores do Jovens do Restelo.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

CATARINA SAYS...

ser pássaro, é ser mais alto.
Do lugar alto, a paisagem inventa-se. Ou, tudo se emoldura à passagem do olhar.
Porque gostava muito de voar, olho muitas vezes os pássaros...
Os pássaros são um bocadinho donos do Céu, só porque estão mais perto.
Percorrem as alturas e vêem-nos de cima. Acredito que são livres porque nessa perspectiva relativizam melhor a importância ou a insignificância das coisas.
É sempre uma questão de foco.
Vendo de perto tudo parece maior, mais pesado. Vendo de longe, sem fugas, vê-se com mais distância, vê-se com mais luz, com mais clareza.
Tem vezes que imagino ver o mundo dessa altura, basta elevar-me. E quando isso acontece a leveza toma conta dos pesos que deixam de ser pesados.
Quantas vezes olhamos a paisagem? Quantas paisagens olhamos de uma vez?
Um ano, um dia, uma hora, têm de diferente o que parece igual.
Um dia ao começar, parece um ano. Um ano ao acabar parece um dia.
Quem não sabe às quantas anda, às tantas é melhor parar, ver, ler, escrever, ouvir, e olhar o Céu.
Olhar de baixo para cima, não é o mesmo que olhar de cima para baixo.
Às vezes é preciso imaginar que temos asas. Ganhamos na vantagem de podermos sentir o que vimos, seja de que degrau for.
Os pássaros, gosto deles, porque me lembram a possibilidade de o fazer, na liberdade da escolha.
Começo a ver de perto o que podia ver ao longe e vice versa.
Assim foi, o passado fim de semana, num Alentejo nosso:
estava tudo á vista, numa dádiva gratuita, que só a Natureza sabe ser.
O Céu estava por conta, como se nos agradecesse o facto de estarmos ali.
Afinal o dia não acabava só deste lado..
Catarina Hipólito Raposo

DESABAFO

Confesso que me faz alguma espécie certos blogues aqui presentes na minha coluna da direita não terem feito (ainda) um link para o Jovens do Restelo. Mas devo ser eu que tenho macaquinhos no sótão...

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

HOJE, PERGUNTARAM-ME: — ESTÁ JÁ, ENTÃO, TUDO PERDIDO?

Intuitivamente, respondi: — Não. Porque a ansiedade de uma reacção libertadora vive no espírito dos melhores. E porque os instrumentos fundamentais dessa reacção já existem e dia a dia mais se definem e mais se apuram.

NICE DAY TO...

Quem ainda não assinou, pode e deve fazê-lo já hoje:
Petição Aborto - Vemos, ouvimos e lemos - Não podemos ignorar!

NÃO NOS ESQUECEMOS

BLOGUE DO DIA (139)

Minoria Ruidosa, de Miguel Vaz.

MÚSICA CELESTIAL

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

BLOGUE DO DIA (138)

Jovens do Restelo, de Duarte Branquinho, João Marchante, Marcos Pinho de Escobar, Miguel Vaz e Paulo Cunha Porto.
Porque hoje é Quinta-Feira.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

SEM AGENDA



Portugal


« Le Poète est semblable au prince des nuées
Qui hante la tempête et se rit de l’archer;
Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant l’empêchent de marcher. »

Charles Baudelaire – quadra final do poema L’Albatros, in ‘Les Fleurs du Mal’, 1857


A situação de Portugal parece ser, de há umas décadas a esta parte, como a do albatroz em terra - feito para a viagem dos ares, as suas enormes asas não o deixam andar.

A Nação Portuguesa é e sempre foi, mais que tudo, uma ideia. Uma ideia colectiva em acção.

Herdeira de uma antiga vontade de autonomia com fundas mas não inteiramente identificadas raízes, com o rei fundador estabelecem-se as condições iniciais para a futura ideia nacional. Na senda de seu pai, Afonso Henriques abriu a porta desse caminho, provavelmente sem o calcular senão ao de leve - as fidelidades da época eram ainda sobretudo outras - começando pelo que deliberadamente procurou, e acabou por estar, ao seu alcance, e tal foi: inaugurou um novo estado à força da espada e com muita diplomacia, e projectou-o o mais que pôde pela Cruzada. Com visão clara, guisou um plano - sabia bem o que queria e com vontade de ferro o cumpriu.

Com João Primeiro, Mestre de Avis, alcançou a nação, em Aljubarrota, a exacta noção de si própria, nas palavras do ancião Diogo Lopes Pacheco, vindo do seu exílio em Castela, e proferidas no mesmo campo da batalha, a seu filho surpreso: «onde haveria eu de estar senão a ajudar este homem a defender este Reino?». Por esta altura, a saída para fora da península, e para o mar, foi claramente uma questão de sobrevivência política, já antes ensaiada, com a chegada às Canárias, e agora - 22 de Agosto de 1415 - com a tomada de Ceuta, como início também da grande arrancada do que se veio a revelar ser, afinal, o cumprimento de uma vocação de destino e a nossa obra maior: a Expansão Ultramarina.

O resto para cá, não vou redizer. Sagrada ‘avant la lettre’ em Ourique, a Nação Portuguesa fez-se através dos séculos saindo para fora de si própria e a si voltando, sabendo dar e receber, como afinal manda o Evangelho: levou a Cruz de Cristo e a sua cultura, e com elas a humana convivência, a quase todo o mundo e trouxe os novos horizontes e as desconhecidas riquezas de toda a espécie, que não só em espécie – garantes da sua liberdade essencial. E com tudo isto, presenteou de bandeja a velha Europa, rabugenta e mal agradecida.

Toda a grandeza desta grande Obra, toda a sua beleza, toda a sua justiça, apesar de todas as vicissitudes e as humanas falhas, têm um nome e este é: Portugal. E o reconhecê-lo não pode senão deixar-nos cair de joelhos e largar em lágrimas. De gratidão, primeiro, mas também…, ai de nós…, de quase desespero e a gritar socorro, depois, e sobretudo, hoje.

Toda aquela imensa obra, que era a nossa ideia em marcha, que era a nossa realidade e o nosso sonho ao mesmo tempo, terminou abruptamente num triste dia - o nosso bem conhecido vinte e cinco barra quatro.

Contudo, a nossa História é hoje, talvez mais que nunca, o nosso mais precioso bem colectivo, não como saudade do passado mas como saudade do futuro - pois ela é e será, estou em crê-lo, a nossa única razão de regeneração e ressurgimento. Ela é ainda, em todo o caso, a boa cal que ainda nos vai mais ou menos ligando, enquanto povo com mais ou menos memória.

Não é toda minha a sugestão usada na seguinte analogia: o ligante grosseiro e estragado que nos têm querido agora impingir é cimento de importação. Chama-se materialismo. Puro e duro. Vem junto com instruções de construção que nos são estranhas e, para cúmulo, querem agora acabar de demolir a lindo palácio de que éramos as diferentes pedras, para depois, com as mesmas, e com muitas outras de outras ruínas, mas só depois de todas convenientemente recicladas em tijolos idênticos, reerguerem uma nova, monstruosa, babélica torre. É esta a estranha ideia totalitária em marcha, a qual, desgraçadamente com a ajuda dos novos Migueis de Vasconcelos, já fez algum, demasiado caminho. Nada mais hostil, como é óbvio, à nossa ideia constitutiva e primacial. Esta contudo, «ainda não é finda».

O albatroz tem de voltar a voar - a sua razão de ser, lembremos, é a eterna viagem. Para já, porém, está muito ferido e cansado. Com a tormenta pode ele, mas só depois de curar. Mas nisto, o pior de tudo, é sempre as feridas voltarem.

Tudo o que sei dizer é que o caminho é decerto estreito e muito duro. Que não passa pela ilusão materialista. E que há de o forçar, com quem quiser avançar.

E terminemos, por agora, sem nunca perder a esperança que nos deve animar, com esta voz muito nossa, que é a própria Nação feita verso:

« Dá o sopro, a aragem - ou desgraça ou ânsia -
Com que a chamma do esforço se remoça,
E outra vez conquistemos a Distancia -
Do mar ou outra, mas que seja nossa! »

Francisco Cabral de Moncada

BOM SOM...

COISA BOA...

FOI FEITO HÁ 10 ANOS E É PARA O FUTURO

Linhas de Fogo — Manifesto de Cultura Lusíada para o Terceiro Milénio, de Bruno Oliveira Santos, Francisco Cabral de Moncada, João Marchante, Manuel Brás e Miguel Castelo Branco, concepção gráfica e ilustração de José Pinto Coelho, edição Nova Arrancada, Lisboa, 2001.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

TERAPIA — II

Ter uma musa por dia dá saúde e alegria.

TERAPIA — I

Tirar uma fotografia por dia dá saúde e alegria.

VOLTO A PERGUNTAR

Passados quatro anos sobre a última vez, não será chegada a hora de voltarmos a marchar pela vida?

DA DINÂMICA BLOGOSFÉRICA

Não se esqueçam os meus leitores habituais que eu agora volta e meia também ali publico postais.

BLOGUE DO DIA (137)

Pena e Espada, de Duarte Branquinho.
Porque hoje é Terça-Feira.

SEMANÁRIO PARA HOJE E SEMPRE

A CADA SUPORTE O SEU REGISTO

Cinema é Cinema, TV é TV, blogue é blogue, FB é FB.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

DA ETIMOLOGIA QUE DÁ QUE PENSAR

Disseminar vem de semente.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

CONSTATAÇÃO DE FACTO

As imagens e as palavras têm mais espaço e mais tempo para respirarem e se disseminarem nos blogues do que nas redes sociais.

POSOLOGIA — II

Fazer um passeio por dia dá saúde e faz crescer.

POSOLOGIA — I

Ler um livro por dia dá saúde e faz crescer.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

CATARINA SAYS...



Injustamente, o homem justo tem de se ajustar à falta de justiça.


"Calam-se as vozes da razão, ressoam mais alto as do lucro, com a astúcia dos seus disfarces:
os homens abandonam a linguagem articulada,
para se reduzirem a ventríloquos na grande
feira das vaidades e dos interesses,
em que não é possível descobrir apóstolos de fé e exemplo, mas vendedores de palavras."


Hipólito Raposo, 1940


assim escrevia o meu avô...escreveria hoje igual caso pudesse.


A questão é quase sempre a mesma. O pior o mais caro de todos os vícios, a vaidade.
A vaidade é vaidosa, por isso é tão difícil sair dela.
Vaidade fútil do ter: achar-se quem se acha dono do mundo, dos outros, das coisas, das verdades.
Vaidade cega, surda e muda.
Vaidade viciante, de quem nada tinha, e julga tudo ter, por causa do poder.
Como se fazem os acertos na contabilidade analítica interna de todos nós?
Fazem-se a acertar em nós, aquilo que não gostamos de ver nos outros.
Depois, vem alento, porque nos é dado sempre saber, que de uma ou outra forma,
num qualquer dia desigual,
o mais importante no fundo, está no Alto.
Esta é a maior verdade: totalmente isenta de vaidade. Daí ser verdade.

Catarina Hipólito Raposo

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

UMA MIÚDA SETE GERAÇÕES ANTES DA MINHA

Lillian Guish.

UMA MIÚDA SEIS GERAÇÕES ANTES DA MINHA

Louise Brooks.

UMA MIÚDA CINCO GERAÇÕES ANTES DA MINHA

Rita Hayworth.

UMA MIÚDA QUATRO GERAÇÕES ANTES DA MINHA

Ava Gardner.

UMA MIÚDA TRÊS GERAÇÕES ANTES DA MINHA

Ursula Andress.

UMA MIÚDA DUAS GERAÇÕES ANTERIORES À MINHA

Raquel Welch.

UMA MIÚDA DA GERAÇÃO ANTERIOR À MINHA

Isabelle Adjani.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

AINDA A FELICIDADE

Muitos continuam a procurar a felicidade numa caldeirada New Age. E o Catolicismo — este sim Universal — aqui tão perto.

DA FELICIDADE

Não nos iludamos com os Direitos do Homem, cumpramos os Deveres do Homem.

FELICIDADE

DA VANTAGEM DOS (SUPORTES) CLÁSSICOS

Tenho o blogue meio empancado. Não consigo publicar imagens, vídeos e textos formatados como deve ser. Vou aproveitar a deixa e voltar já à leitura. Os livros nunca se avariam.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

SEM AGENDA



A Rebelião

Religião e rebelião: se tal não nos tivesse já sido dito por Quem de direito, a evidência tem demonstrado ao longo dos tempos que estes dois grandes reinos do espírito habitam, a cada momento, como vizinhos irredutivelmente hostis, a alma de todos e de cada homem.

A religião, propriamente dita - pois há também os seus simulacros e substitutos de várias espécies - liga-nos, ou religa-nos, à nossa fonte original e lança-nos, ou relança-nos, para o nosso fim de destino - é a âncora que nos é oferecida e que nós próprios arremessamos no esforço de compreender a miraculosa maravilha da criação e nesta, a misteriosa singularidade do nosso exclusivo privilégio de seres conscientes e, no momento seguinte, é a bússula que nos orienta, cada qual no cumprimento da sua vocação particular, na aventurosa demanda de um porto distante - para acabarmos por descobrir, assim o creio, no fim da viagem e se lá chegarmos, termos regressado por caminho vário ao ponto de partida original.

A rebelião, entendida como o não reconhecimento ou a desobediência declarada a uma ordem transcendente, que é a ordem que nos é dada viver e na qual, pela qual e com a qual somos convidados a colaborar amorosamente ao longo de toda a nossa vida, radica na nossa natureza de seres conscientes - os animais propriamente não se rebelam - possuidores de inteligência e vontade, e, simultaneamente, portadores das inclinações naturais próprias do nosso corpo animal. Desta combinação de atributos, única no homem, mostra a experiência que facilmente pode surgir o ódio à ordem superior que nos rege, que nós não estabelecemos e que manifestamente se opõe, tantas vezes, ao nosso abusado amor próprio e aos nossos mais variados desejos. Eis então a paixão do orgulho e a concupiscência, que serão, nas suas formas desregradas, os dois grandes sinais de rebelião.

Os nossos primeiros pais foram grandes rebeldes e disso se vieram a arrepender; por eles, a nossa condição terrena mais não é que a herança da sua continuada e merecida penitência. Porém antes, já Lúcifer, o diabólico anjo caído, foi o maior e definitivo rebelde e até hoje e em todos os tempos ele e os seus exércitos têm espalhado a rebelião pelo mundo.

A Virgem Imaculada, Mãe de Deus e Nossa Senhora, personifica, talvez mais que nunca no momento da Anunciação do anjo, o contraponto radical e absoluto da rebelião. Nós católicos, acreditamos não só que Ela foi poupada à nascença de toda e qualquer predisposição para se rebelar, como foi também predestinada a ser a maior e mais eficaz defensora e intercessora da humanidade na guerra sem tréguas com o rebelde.

Cada um de nós é simultaneamente um religioso e um rebelde, e destes ambos, parte em acção e parte em potência; a esmagadora maioria será provavelmente, no correr da vida, uma mescla dinâmica mais ou menos consciente e mais ou menos 'equilibrada' de ambas as coisas; contudo, os que mais têm feito a história do mundo, não só como actores directos mas também em papeis de retaguarda, têm saído sobretudo das pequenas minorias radicais em ambos os extremos, tanto os muito rebeldes - os grandes revolucionários modernos serão porventura o exemplo máximo - como os muito religiosos, que no seu caminho traçado, por reacção fatalmente se opõem aos primeiros, e assim também não podem ser, em coerência, senão convictos ou obrigados contra-revolucionários. O que mostra, ao contrário do dito popular, que nem sempre no meio é que está a virtude.

Quanto a mim, direi apenas que não ambicionando nem rejeitando entrar para a história, não vejo outra alternativa que não seja o dever de procurar reagir, tal como tantos outros já fizeram e vêm fazendo, com os meios encontrados que a Providência quiser dar, e a começar por mim próprio, contra todas as forças destrutivas rebeldes.

E a terminar lembremo-nos que Nossa Senhora é também Rainha de Portugal. Neste longo tempo de «vil tristeza» e «cerração», cujo dissipar não sabemos o dia e em que o rebelde parece campear como nunca, peço a todos que me acompanhem numa sentida prece a Ela elevada por esta sua dilecta Nação.

Francisco Cabral de Moncada

LEMBRETE

Convidando-os a passarem por lá, recordo aos visitantes deste espaço que agora estou também, tertuliando com muito gosto, na casa comum que é o blogue colectivo Jovens do Restelo.

AFEIÇÃO DE MÃE

Homilia na Missa de sufrágio por El-Rei D. Carlos I e o Príncipe Real
(Lisboa, Igreja de Nossa Senhora da Encarnação, 1-II-2011)

1. Introdução. O Evangelho desta terça-feira da quarta semana do tempo comum recorda, em simultâneo, dois milagres de Nosso Senhor: a cura da mulher que havia doze anos padecia um fluxo de sangue e a ressurreição da filha de Jairo, um dos chefes da sinagoga (cfr. Mc 5, 21-43).
Ambos nos falam do extraordinário poder que, pela fé, opera milagres, num convite àquela conversão que, mais do que uma momentânea prece num momento de particular aflição, se deve traduzir no habitual abandono das nossas vidas nas paternais mãos do nosso providente Criador. O sentido da nossa vida é o de uma incessante peregrinação para a casa do Pai e o instante da nossa morte mais não é do que o fim desse breve período terreno da nossa existência e o começo da sua etapa definitiva, na eternidade de Deus. Por isso, todos os instantes da nossa vida deveriam reflectir esse sentido de transcendência, sem o qual a existência humana resultaria um trágico absurdo.

2. Cumprimentos. Todos os anos, no dia primeiro de Fevereiro, a Casa Real manda celebrar uma Santa Missa de sufrágio por Sua Majestade Fidelíssima El-Rei D. Carlos I, e por Sua Alteza Real o Príncipe Dom Luís Filipe, que em igual data do ano de 1908 tombaram, por Deus e pela Pátria, no Terreiro do Paço.
Quis a Providência que, tendo no ano passado assegurado este serviço litúrgico a pedido do Presidente da Real Associação de Lisboa, por impedimento do Senhor Cónego João Seabra, de novo o faça este ano, graças ao mesmo amável convite, que muito me honra. Por isso, cumpre-me agradecer a fidalga hospitalidade do meu Pároco e titular desta belíssima Igreja de Nossa Senhora da Encarnação, bem como oportunidade que se me dá de me associar a tão justa homenagem às vítimas do regicídio. É para mim especialmente grata a ocasião que assim se me oferece de servir a Família Real, que cumprimento nas reais pessoas do Senhor Dom Duarte e da Senhora Dona Isabel, Duques de Bragança, pedindo-lhes que aceitem os meus respeitos pela Instituição que encarnam, na comunhão dos ideais cristãos que professam com exemplar fidelidade. Peço ainda que contem sempre com o modesto óbolo da minha oração, que os não esquece nunca, nem a seus filhos, Suas Altezas o Príncipe da Beira e os Infantes de Portugal.
Consta-me também a presença de representantes oficiais das Reais Ordens dinásticas de Santa Isabel e de Nossa Senhora da Conceição da Vila Viçosa, bem como da Ordem Soberana e Militar de São João de Jerusalém, dita de Malta, e da Ordem de Cavalaria do Santo Sepulcro de Jerusalém: a todos saúdo, bem como aos presidentes de outras instituições que também se quiseram associar a esta efeméride, nomeadamente a Causa Real, o Instituto da Nobreza Portuguesa, a Associação da Nobreza Histórica de Portugal e a Juventude Monárquica. Envolvo na mesma bênção todos os numerosos fiéis que devotamente se propõem igualmente participar nesta Eucaristia e quantos, embora fisicamente ausentes, nos acompanham com as suas orações.

3. O sentido da celebração. Importa recordar que esta comemoração, mais do que um acto de afirmação monárquica ou de fervor patriótico, assume-se essencialmente como acção litúrgica, ou seja, como um acto de adoração, de súplica, de acção de graças e de desagravo a Deus Uno e Trino. Por isso, se a comum nacionalidade e a idêntica filiação monárquica une todos os fiéis hoje aqui reunidos, necessário é que, por maioria de razão, todos comunguem a mesma fé, sem a qual não faria sentido esta evocação religiosa.
Uma tal atitude cristã deve-se traduzir não apenas pela fervorosa oração por El-Rei D. Carlos e pelo Príncipe Real, mas também pelos seus assassinos, uma vez que é timbre dos discípulos de Cristo, em contraposição aos seguidores de outras religiões, o mandamento novo da caridade (cfr. Jo 13, 34-35), que obriga ao amor dos inimigos (cfr. Mt 5, 43-48). E, porque a Igreja é, pela sua própria natureza, católica, ou seja, universal, esta nossa prece não se limita apenas àqueles protagonistas da tragédia que antecedeu e propiciou, há mais de um século, a implantação da república portuguesa, antes abarca todos os heróis da nossa Pátria e da nossa fé, e também todas as vítimas inocentes da intolerância e do fanatismo, bem como todos os criminosos e homicidas, na esperança de que a misericórdia divina os perdoe e acolha, com a mesma espantosa magnanimidade que experimentou, no momento da sua morte, o bom ladrão (cfr. Lc 23, 39-43).

4. A dimensão íntima de um drama nacional. Já depois de curada a hemorroíssa que, com a sua extemporânea intervenção, atrasou Nosso Senhor no seu caminho para casa de Jairo, «vieram dizer da casa do chefe da sinagoga: “A tua filha morreu. Porque estás ainda a importunar o Mestre?” Mas Jesus, ouvindo estas palavras, disse ao chefe da sinagoga: “ Não temas; basta que tenhas fé”» (Mc 5, 35).
Impressiona a frieza como é comunicada ao desconsolado pai a morte da sua filha de doze anos: os próprios amigos, que lhe transmitem a dolorosa notícia do óbito, censuram a sua insistência junto do Mestre, única esperança para o seu amargurado coração paterno. O que para alguns mais não é do que um acontecimento brutal é, para os seus mais próximos familiares, causa de um imenso desgosto. Neste sentido, a dimensão nacional ou política do regicídio, de tão funestas consequências para a História de Portugal, não deve levar a esquecer a dimensão mais propriamente familiar do terrível drama que, com aquele duplo crime, se abateu sobre a nossa Família Real.
Numas Notas absolutamente íntimas sobre aquele trágico acontecimento, El-Rei D. Manuel II conta que sua augusta Mãe, logo que saiu da carruagem em que jazia El-Rei D. Carlos e agonizava o Príncipe D. Luís Filipe, gritou «com uma voz que fazia medo: “Mataram El-Rei! Mataram o meu Filho!”» (D. Manuel II, Notas absolutamente íntimas, 21-5-1918, cit. in Miguel Sanches de Baena, Diário de D. Manuel e estudo sobre o regicídio, Alfa, Lisboa 1990, pág. 51). Não há palavras que possam traduzir a dor daquele duplo luto de quem acabara de presenciar, indefesa, ao assassínio do marido e do seu filho primogénito. Ferida por uma tão grande mágoa, a Rainha subitamente desfaleceu, caindo no chão, mas logo se ergueu, «quase envergonhada por ter caído» (Idem, págs. 52-53), segundo o relato do seu filho sobrevivente, então já, de facto, Rei de Portugal, que depois afirma: «Quem dera a muitos homens terem a décima parte da coragem que minha Mãe tem. Tem sido uma verdadeira mártir!» (Idem, pág. 53). Entretanto, chegou a Rainha Dona Maria Pia que, dirigindo-se à Senhora Dona Amélia, disse: «Mataram o meu filho!». A que a Rainha respondeu: «E o meu também!» (Idem, pág. 52).
Talvez aos políticos interesse, sobretudo, a situação política decorrente do regicídio, no complexo estudo das suas causas e efeitos nacionais e internacionais. Talvez os historiadores se ocupem do facto, no âmbito mais alargado da evolução colectiva deste povo que, não obstante os seus momentos gloriosos, conhece também páginas manchadas pelo sangue dos mártires da Pátria, como certamente foram El-Rei D. Carlos e o Príncipe Real. Talvez os juristas se interessem sobretudo pela decorrente questão penal e ajuízem a responsabilidade criminal dos executores do acto e das associações secretas que agiram por seu intermédio. Talvez o público se satisfaça com a notícia alarmista, o escândalo mediático, o relato mais impressivo e chocante do tão sensacional acontecimento mas, uma vez ultrapassada a sua palpitante actualidade, logo cai no ingrato esquecimento da grei, que arrasta consigo, como foi o caso, a total impunidade dos seus responsáveis.
Se o regicídio foi uma tragédia nacional, foi também e principalmente um drama familiar. Se nenhum bom português pode ser alheio a esta convulsão política e social, nenhum cristão pode ficar indiferente ante a tragédia que o regicídio representou para a Família Real que, por ser a primeira da nação e a que melhor encarna a nossa memória e identidade, é também, de algum modo, a família de todos nós.

5. Deus é família. Segundo São Marcos, «depois de Jesus ter atravessado de barco para a outra margem do lago» (Mc 5, 21), chegou «um dos chefes da sinagoga, chamado Jairo. Ao ver Jesus, caiu a seus pés e suplicou-Lhe com insistência: “A minha filha está a morrer. Vem impor-Lhe as mãos, para que se salve e viva”» (Mc 5, 22-23).
Era chefe da sinagoga, mas não se vale da sua autoridade, nem do correspondente prestígio, para alcançar a graça da cura, que impetra humildemente na sua qualidade de pai, para a filha moribunda. Esquece-se da compostura que porventura seria de esperar de alguém com a sua posição social e cai aos pés de Jesus, num acto de tão profundo abatimento que Nosso Senhor «foi com ele» (Mc 5, 24), como que compelido pelo seu amor paterno e fazendo seu o sofrimento de Jairo.
Muito antes da encarnação do Verbo, Deus já se tinha revelado ao seu povo, sobretudo através dos patriarcas e dos profetas. Os judeus, ao contrário dos outros povos, conheciam Yahvé e acreditavam na sua existência e nos seus atributos. Mas a revelação de Deus não ia além da percepção da sua infinita majestade, da omnipotência da sua realeza, da sua condição única e singular de Senhor de todo o universo. Será preciso que se cumpra, em Nosso Senhor Jesus Cristo, «a plenitude dos tempos» (Gal 4, 4), para que o Deus uno três vezes santo se revele na sua intimidade, ou seja, como Pai, Filho e Espírito Santo. A referência a uma paternidade e filiação no seio da própria vida trinitária, bem como a revelação do amor, como essência da natureza que Deus é (cfr 1Jo 4, 8), expressam uma realidade surpreendente: Deus, que é amor na unidade da sua essência, é família na pluralidade das suas Pessoas.
Há ainda quem pense que Deus é uma espécie de Gigante Egoísta (cfr Oscar Wilde, O Gigante Egoísta, in Obra completa, Ed. José Aguilar Ltda., Rio de Janeiro 1961, págs. 244-247), que observa, impávido e sereno, as alegrias e os sofrimentos das criaturas, como se mais não fossem do que uma sua sádica distracção. Mas a fé cristã ensina, pelo contrário, que Deus é Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo e nosso, pela infusão do amor do Espírito Santo nos nossos corações. Por isso, não somos apenas criaturas feitas à imagem e semelhança de Deus, mas seus filhos caríssimos, na medida em que, pela graça, nos foi dada a participar a natureza divina (cfr 2Pd 1, 4).
Ciente desta tão gozosa e deslumbrante realidade, São Paulo cantava a grandeza desta nossa filiação divina: «tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não têm proporção com a glória que se manifestará em nós. Pelo que este mundo espera ansiosamente a manifestação dos filhos de Deus. De facto, a criação foi sujeita à vaidade […] com a esperança de que também a própria criação será livre da sujeição à corrupção, para participar da liberdade gloriosa dos filhos de Deus» (Rm 8, 18-21). E São Pedro concluía que os cristãos, por obra e graça do Baptismo, são «uma geração escolhida, um sacerdócio real, uma nação santa, um povo adquirido por Deus» (1Pd 2, 9).

6. Deus, família e monarquia. Se Deus é família e as instituições do Estado devem de algum modo reproduzir, na sociedade civil, a estrutura dessa relação das criaturas com o seu Criador, não será descabido, do ponto de vista teológico, concluir a conveniência de uma chefia do Estado que, como Deus, seja familiar. Neste sentido, sem querer dogmatizar em temas políticos opináveis, nem excluir outras formas legítimas de organização social, pode-se afirmar que a monarquia, na medida em que outorga a chefia e representação do Estado a uma família, mais do que a um indivíduo, é a forma política que mais se aproxima da realidade divina revelada no mistério da Santíssima Trindade e a que melhor corresponde e mais convém à preservação da célula fundamental da sociedade. Se a família natural, nas relações que estabelece entre pais e filhos, é imagem e semelhança da filiação divina, pela participação que aos pais cabe da própria paternidade de Deus (cfr Ef 3, 15), então um sistema de chefia do Estado que respeite e consagre esta realidade familiar é o que mais naturalmente se adequa à natureza social do ser humano e melhor expressa, na autoridade do poder público soberano, a imagem familiar de Deus.
Neste sentido, talvez não seja temerário afirmar que a razão teológica da instituição monárquica se encontra na revelação trinitária do mistério de Deus, ou seja, na sua estrutura familiar. Para além deste fundamento transcendente ou sobrenatural, que eventualmente não colhe para quem não professa a religião cristã, pode-se também afirmar que a instituição monárquica, pela sua natureza profundamente familiar, tem um carácter essencialmente natural, porque institui, na cúpula da organização política, o modelo familiar, que é a base antropológica de qualquer organização social.
Esta conaturalidade do regime monárquico, devida à sua estrutura essencialmente familiar, manifesta-se de muito modos, mas sobretudo na proximidade da nação em relação à Família Real. Não em vão, o Chefe da Casa Real francesa e a sua geração recebe um significativo nome: a Família de França. É assim porque os Reis e os seus descendentes são, de algum modo, a expressão mais representativa da soberania, não apenas na sua actualidade, mas também na sua origem e evolução. Se a pátria é, etimologicamente, a «terra dos pais», não pode ser simbolizada senão através da família que estabelece a relação histórica com os fundadores da nacionalidade, até porque um representante eleito por sufrágio é sempre um homem de facção, que tende a beneficiar os seus próprios eleitores contra os restantes cidadãos, não se identificando nunca, por conseguinte, com todos os seus compatriotas.
Com efeito, a concepção republicana da chefia do Estado é individualista, porque conta única e exclusivamente com a pessoa eleita e investida nessas funções, enquanto a concepção monárquica é familiar, porque não assenta apenas na pessoa do soberano, mas em toda a sua família, que participa nas suas funções e, por isso, está também ao serviço da comunidade nacional.

7. A responsabilidade moral da Família Real. Se a participação, pela Família Real, das funções de chefia e representação do Estado, a fazem credora de uma especial consideração política e social, também acrescem a sua responsabilidade social. Aos Reis e Príncipes deve-se-lhes prestar a honra que lhes é devida, mas na condição de que, pelo seu próprio comportamento, se afirmem dignos dessa homenagem. Se, como se costuma dizer, à mulher de César não lhe basta ser honesta, porque deve também parecê-lo, com mais razão se pode e deve exigir aos membros de uma Família Real aquela exemplaridade ética que é razão da sua proeminência. A distinção entre a vida pública e privada não faz sentido quando referida às pessoas reais, porque essa sua condição significa que toda a sua existência deve estar ao serviço da nação e, portanto, vivida de forma moralmente exemplar.
A este propósito, é significativa a actuação de João Baptista, que publicamente reprovou ao Rei Herodes a sua vida dissoluta (cf. Mt 14, 1-12). Fê-lo, certamente, porque o seu comportamento era escandaloso para qualquer judeu, mas também porque, enquanto monarca, estava obrigado a ser uma referência para o seu povo e, por isso, o seu pecado era maior. É verdade que a sua falta dizia respeito à sua intimidade, mas um rei digno desse nome não se pode permitir baixezas contrária à alteza da sua condição, a qual implica uma constante virtude, que seja lição e orgulho para todos os seus súbditos.
8. Homenagem às Rainhas de Portugal. Ainda a este propósito, permita-se-me uma breve alusão ao papel fundamental desempenhado pelas Rainhas de Portugal, sobretudo como exemplo de fidelidade matrimonial e de dedicação maternal. Outros exaltarão as suas virtudes patrióticas, bem como as suas obras de benemerência, mas não é menos digna de menção a sua tantas vezes heróica dedicação à família, quer na fidelidade aos seus compromissos matrimoniais, tanto mais meritória quanto nem sempre os casamentos régios se realizavam por iniciativa dos nubentes, quer ainda na instrução, com o seu exemplo e a sua palavra, de ínclitas gerações de Infantes de Portugal.
Embora não atingidas pelos disparos dos regicidas, as Rainhas Dona Maria Pia e Dona Amélia foram, ainda que incólumes, umas das principais vítimas do regicídio. Ambas Rainhas sofreram, respectivamente, a morte de filhos seus, tendo a Senhora Dona Maria Pia perdido também um seu neto e a Senhora Dona Amélia, seu augusto marido.
Dois significativos gestos atestam o heroísmo maternal destas duas últimas Rainhas, que o regicídio irmanou na mesma saudade e dor.
Quando, a 2 de Outubro de 1873, a Senhora Dona Maria Pia passeava, no sítio do Mexilhoeiro, com os seus filhos, uma onda arrebatou o Príncipe Dom Carlos, então com dez anos, e o seu irmão, o Infante Dom Afonso. Sem se deixar intimidar pela fúria da maré, a Rainha atirou-se de imediato à água, para salvar os seus filhos, pondo também em risco a sua própria vida. Os três vieram a ser salvos pelo ajudante do faroleiro da Guia, que foi por este motivo condecorado com a Torre-e-Espada, tendo sido também atribuída uma medalha à Senhora Dona Maria Pia. A coragem deste seu gesto foi a razão que levou à projecção de um monumento em seu louvor, muito significativamente denominado Afeição de Mãe. A estátua não chegou a ser erguida, mas o seu modelo, em barro, ainda se conserva no Palácio Real da Ajuda (Rui Ramos, D. Carlos, Círculo de Leitores, Rio de Mouro 2006, pág. 32).
Por sua vez, a atitude da Senhora Dona Amélia, por ocasião do regicídio, não poderia ter sido mais valerosa. Ante o estrondo dos disparos, que irromperam, segundo o relato de D. Manuel II, «como numa batida às feras», «uma perfeita fuzilada» (D. Manuel II, Notas absolutamente íntimas, 21-5-1918, cit., pág. 49), a Rainha não só não se amedrontou – como a grande maioria dos presentes, que, apavorados, fugiram à desfilada – como se pôs de pé na carruagem, dando assim o corpo ao manifesto. Quereria, decerto, defender os seus, nem que fosse a troco da sua própria vida. Ficou para a História a sua reacção patética, bramindo o ramo de flores que, no cais, momentos antes, lhe tinha sido oferecido por uma sua afilhada, ao mesmo tempo que gritava: «Infames, infames!» (Rui Ramos, D. Carlos, Círculo de Leitores, Rio de Mouro 2006, pág. 316). A infâmia dos que traiçoeiramente abateram, pelas costas, El-Rei, foi o pedestal de que a Providência se serviu para elevar este imperecível monumento ao heroísmo desta Rainha de Portugal, esposa e mãe mártir (D. Manuel II, Notas absolutamente íntimas, 21-5-1918, cit., pág. 53).
No esteio das suas augustas antecessoras, e em especial destas duas últimas Rainhas de Portugal, a Senhora Dona Isabel tem sido um extraordinário exemplo de virtude cristã, prestando deste jeito um inestimável serviço à Instituição e a Portugal. Bem haja, Alteza Real, por este vosso eficacíssimo apostolado que, não obstante a sua silenciosa descrição, é sonoro pregão dos ideais cristãos! Aceitai a nossa homenagem pela vossa fidelidade aos valores espirituais que, desde a sua fundação, nortearam este Reino que é de Maria e que é vosso e que, juntamente com o Senhor Dom Duarte, tão dignamente representais. Queira Deus que todos quanto se revêem neste mesmo ideário se comprometam, de acordo com o exemplo de Vossas Altezas Reais, a honrar os seus compromissos cristãos e familiares, na certeza de que, deste modo, não só prestam um valioso serviço à pátria e à Casa Real, como contribuem principalmente para a construção do Reino de Deus.

9. Cumprir Portugal. Uma curiosa coincidência numérica une os dois episódios evangélicos agora considerados: não só a hemorroíssa padecia há doze anos a doença de que foi pelo Senhor milagrosamente curada (cfr Mc 5, 25), como doze eram também os anos da jovem filha de Jairo, que Jesus ressuscitou (cfr Mc 5, 42). É provável que esse tempo signifique, no primeiro caso, uma doença tão persistente que seria, em termos humanos, incurável. Em relação à adolescente, os seus breves doze anos reforçam a tristeza provocada pelo seu inesperado óbito, porventura mais tolerável se a idade fosse provecta.
Não exagerarei se comparar o nosso país àquela doente «que tinha um fluxo de sangue havia doze anos, que sofrera muito nas mãos de vários médicos e gastara todos os seus bens, sem ter obtido qualquer resultado, antes piorava cada vez mais» (Mc 5, 25-26). O nosso Estado padece uma imparável hemorragia de mundos e fundos, que conduziu o nosso país a uma quase inimaginável situação de endividamento e de pobreza. Os recorrentes sacrifícios que são pedidos à população, não só não produzem frutos de um maior bem-estar social, como parecem contribuir para o agravamento diário da já agonizante situação. Os muitos «médicos» que se abeiraram da Pátria moribunda, sempre com juras de prodigiosas receitas, em nada contribuíram para a desejada e prometida cura e, com os seus generosos honorários, agravaram ainda mais o seu empobrecimento.
Mesmo as instituições que pareciam o mais sólido fundamento da sociedade – como a justiça, a saúde e a educação – soçobram nas mãos de mercenários aventureiros que, esquecido o ideal do bem comum e o princípio de serviço que deveria inspirar todos os governantes e funcionários do Estado, oferecem hoje um deplorável espectáculo de incrível amadorismo e da mais aflitiva e impune irresponsabilidade.
Sem saúde, sem receitas, sem recursos que bastem para a nossa digna sustentação, sem hipóteses de saldar a gigantesca dívida pública e sem políticos capazes de gizarem uma solução nacional, só nos cabem duas possíveis reacções: o desespero dos incrédulos, ou a esperança da fé.
Quando a Polónia cristã padecia o jugo comunista, um prelado, tendo em conta que o seu país se encontrava cercado, em todas as suas fronteiras, por nações satélites da então poderosa União Soviética, assim se dirigiu aos fiéis:
- Já que não nos podemos voltar para norte, nem para sul, para oeste, nem para leste, dirijamo-nos para a única direcção que nos resta: para cima, para o alto, para o Céu!
Quando Jesus disse que a filha de Jairo não estava morta, mas apenas adormecida, «riram-se d’Ele» (Mc 5, 40). Adivinho esse mesmo esgar trocista nos que agora pensam que Portugal é morto e enterrado e, por isso, descrêem esta palavra final de alento. Que seja. Mas peço o arrojo da esperança aos filhos desta bendita terra de Santa Maria, para que, como os nossos antepassados em 1385 e em 1640, também agora perseverem na ousadia da fé. Elevai pois, de novo, o estandarte das quinas e fazei vida da vossa vida a oração do poeta: «Senhor, falta cumprir-se Portugal!» (Fernando Pessoa, O Infante, último verso, in Mensagem, Edição clonada do original da Biblioteca Nacional, Guimarães Editores, 2009, pág. 61).

Padre Gonçalo Portocarrero de Almada