sexta-feira, 22 de junho de 2007

O CORPO E A ALMA EM LEITÃO DE BARROS (PARA A FILÓSOFA SOFIA)

Para além de tudo o que aqui ficou escrito, acrescento: em Lisboa, Crónica Anedótica (1930), Leitão de Barros filma os ciclos da vida — da infância à velhice — de uma forma humana e plasticamente bela. Os rostos e os corpos são retratados com uma sensualidade fascinante. É um esteta voyeur que vampiriza as pulsões eróticas das mulheres e homens de Lisboa — nessa enebriante viragem de décadas —, sem, contudo, lhes retirar a energia, ou — muito menos — a alma. Afinal, este esteta é também um humanista, com toda a carga histórica e estética que a palavra transporta. Assim, atravessando bairros e extractos sociais, mostra várias personagens anónimas da Capital, com notáveis grandes planos de rostos, em toda a sua expressiva individualidade. Por outro lado, quando se trata de planos gerais, como na espantosa sequência das Forças Armadas, com Marinha e Exército, os movimentos dos grupos adquirem um valor balético e coreográfico de inexcedível beleza no Cinema Português. Nestas cenas, o efeito de ralenti vem sublinhar a beleza plástica das acções: os marinheiros do Navio-Escola Sagres são elevados, nas suas simples tarefas diárias — depois de captados pela câmara voyeur e após a dinâmica montagem —, à categoria de heróis clássicos, na beleza escultórica dos corpos e na coreografia dos movimentos colectivos. Aqui cheira a Couraçado, de Eisenstein, como ao longo da película se sente Vertov; mas, cá para mim (meu Deus, o que eu vou dizer...), vai-se mais longe em poesia do olhar, pois também pressentimos a influência das vanguardas francesas. Leitão de Barros usa Lisboa e os lisboetas como matéria-prima para edificar uma obra plástica e rítmica, profundamente humanista, e, com fortes marcas identitárias — onde, ainda hoje, todos nos reconhecemos. Destacaria, a finalizar estas notas de visionamento, e só estas, porque este filme não se encerra — pois fugiria certamente! —, uma última cena: o treino de uma belíssima carga (homens de espada em riste e cavalos galopando, em plena harmonia), levada a cabo pelo Regimento de Cavalaria 7 : nestas imagens, em slow motion, é toda uma Ética de Cavalaria — para sempre perdida — que desfila à nossa frente. De arrepiar.