terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

ALERTA AO LEITOR SOBRE A DIARÍSTICA

De todos os géneros literários, nenhum mais híbrido do que o diário. Nele há de tudo um pouco: a crítica impressionista, o poema em prosa, o esboço de conto, o plano de ensaio, a reflexão intemporal, o comentário circunstancial. De tudo, participa um pouco, nada realiza totalmente. É forma adequada aos temperamentos anárquicos e inconstantes, porque consente a improvisação e a imprecisão, o apontamento e o fragmento. E nem é a via mais segura para a confissão: esta faz-se melhor na terceira pessoa. Por isso os diaristas, que são ao mesmo tempo romancistas, afirmam que o verdadeiro diário se encontra nos seus romances. Depois, é difícil achar a dosagem justa entre o individual e o universal, entre o que é nosso, e nosso permanece, e o que, sendo pessoal, permite no entanto a generalização. Nada é tão difícil como falar de nós próprios: acaba por pecar-se ou por defeito ou por excesso, pela demasiada complacência ou, mais raramente, pela demasiada severidade. Outro perigo do diário reside no predomínio do acidental sobre o essencial, da crónica sobre a introspecção, da opinião sobre a crença. E não vale a pena entrar no problema da sinceridade, pois se toda a arte é artifício, ele tem no diário o seu campo predilecto. Atenção, portanto, à proclamada sinceridade de alguns diários: o autor pretende burlar-nos.
João Bigotte Chorão, Diário Quase Completo, edição Imprensa Nacional — Casa da Moeda, colecção Biblioteca de Autores Portuguess, Lisboa, 2001.